sábado, 26 de julho de 2014

Da arte de escolher

Quem, na escola, passou por Cecília Meireles, mesmo que com a desculpa de aprender pronomes, teve ali sua primeira chance de aprender algo muito mais profundo, algo sobre o mundo e nossa condição humana: o mecanismo das escolhas.

“Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.”

Ou isto ou aquilo e pronto, aprendemos que escolher implica, também, em não escolher. OU isto OU aquilo, jamais isto E aquilo. Jamais o calor da luva e o brilho do anel. Ou um, ou outro.

Quem não compreendeu (ou teve uma professora sem essa inspiração) teve outra chance na música que, por muito tempo, foi tema de “Malhação”. Quem não lembra da voz de Chorão declamando “Cada escolha, uma renúncia. Isso é a vida”.

Parece-me que hoje a escolha é uma só: tudo. Queremos tudo, ou melhor, queremos tudo aquilo que for bom em cada item do catálogo. O calor da luva, o brilho do anel, a firmeza do chão e aventura do ar. Com limão e gelo, por favor.

Queremos o companheirismo de uma relação e as aventuras de estarmos solteiros. Queremos dinheiro sobrando no final do mês e a moleza de trabalhar pouco. Queremos fazer sucesso, mas isso sem acordar mais cedo ou dar duro. Queremos melhorar no português, mas olhando a novela das nove, já que para ler não temos tempo. 

Sim, queremos a limonada (e bem doce!), mas sem passar pelo azedo dos limões. Não é fácil assim. Cada escolha implica em um bônus e um ônus. Não se pode mudar de opção assim que tudo se complica. Ou melhor, mudar se pode, mas voltar à anterior, quando as coisas se acalmam, talvez não seja tão simples assim.

A cultura da busca pelo prazer (e só por ele) nos faz fugir de qualquer dor, qualquer dificuldade, qualquer atrapalho. Na hora dos percalços esquecemos que eles também são parte do que optamos. Se escolhemos um emprego OU outro, um amigo OU outro, um parceiro OU outro, é porque temos motivos para isso e esses motivos não podem ser postos de lado diante do “aspecto” bom de uma opção, por vezes, bem pior. 

Não se pode ter o melhor de dois mundos.

A partir do momento em que uma escolha se faz, as outras opções desaparecem (ou pelo menos deveriam). Mas não. Se quer o carinho de um filho e o reconhecimento do outro. Se quer a companhia de um homem e o status do outro. Se quer a beleza de uma mulher e o senso de humor da outra. Se quer ficar bem com os dois lados, quando já se escolheu um deles. O problema dessa ambivalência toda, dessa dificuldade em abrir mão do que já não serve, é a insegurança que gera. De um momento para outro, as opções podem não estar mais disponíveis. Você pode, sim, ficar sem nada. Afinal, sempre há alguém que entendeu a lição das escolhas e escolhe, em algum momento, seguir em frente, ao invés de ser só uma entre várias opções.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Do lado

É preciso não sentir. E se, por um descuido, uma fatalidade, uma distração, algo se sentir, então é preciso calar. Sentir e falar o que se sente é sempre perigoso. É um risco sem tamanho expor as suas profundezas se ninguém quer, realmente, mergulhar nelas. O mundo é todo feito de superfícies. Só tocamos a aparência das coisas. Só ficamos na camada mais externa possível. É essencial, portanto, que só coloquemos à mostra essa mesma camada. Só a pele, só o rosto, só as mãos (e essas ainda com cuidado, com cuidado...). Só o que é extremo e pode respirar tranquilo do lado de fora merece ser dado à luz.

Por fora ainda há a ilusão e deve-se, impreterivelmente, permanecer-se nela. Por dentro somos feitos de ascos, lava, lama e monstros. Há petróleo correndo negro pelas profundezas dos nossos porões.

Por isso o que está dentro deve ficar dentro. E as palavras são escapes, são armadilhas, alçapões que se abrem velozes e deixam escapar sentires. As palavras voam como morcegos, destroçando telhados, invadindo com sua escuridão o dia e revelando com seus gritos o maior horror que há: por dentro somos, todos nós, humanos.

E de repente nosso interior está na praça, no palco, na luz do picadeiro. E o circo é de horrores. Não é uma foto, um livro, um risco, um riso. É um homem. É um homem aquilo ali.