sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Sentir

Às vezes o que se sente não cabe na prosa, escapa dos pontos e linhas, é poesia líquida. Às vezes o que se sente não cabe na fala, cala. E não adianta sentar no balanço, enquanto a chuva não vem e a delicadeza é amarela. Não adianta pensar em rimas ricas e em todos os conceitos de Schiller.

Às vezes o que se sente não cabe no peito, se espalha, e eu então respeito. Deixo o sentir ser carne, pelos, pés. Pés ora no céu, ora no chão. Balanço na contramão.

Às vezes o que se sente não tem desculpa, portanto não tem, também, culpa. Às vezes o que se sente é libertação e liberdade não pede perdão.

Às vezes o que se sente vira sonho, lembrança. E é verde. Verde-esperança, a colocar tudo de ponta cabeça, a rebobinar céus e a cortar da fita os erros. Não, os erros não, a consciência do errado, a mordida no fruto, o início do pecado. O Éden todo refeito por nós.

Sim, às vezes o que se sente é poesia. Inútil botar em palavras, não cabe, vira folia. Não folia de quarto bagunçado e meia no chão. Folia de carnaval. Sentir de arlequim sorrindo, dançando consigo mesmo, sem máscara, bem no meio do salão.



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Revelar

Posso encontrar pelo corpo as marcas de todos aqueles que não me amaram quando eu precisava. Os sinais daqueles que de algum modo me feriram, destrataram, rejeitaram. Sim, meu corpo é um mapa de desamores. E nenhum desses desamores precisou me tocar para deixar digitais. É o não-toque que marca mais, que machuca mais fundo, que lacera da pele ao osso.

As marcas que eles deixaram eu mesmo fiz. Foi sempre assim. Cada vez que alguém não me achava digno, eu não me achava também. Cada vez que alguém me odiava, eu me odiava também. Cada vez que me abandonavam, eu me abandoava também. Desde o berço. A primeira marca, desenhada na perna esquerda.

Eu posso ler cada uma delas. Posso passar os dedos e tocar na minha pele as rejeições alheias. E se posso tocá-las, também posso apagá-las. Eu percebi, depois de 26 anos, que todo amor que eu procuro eu já tenho. Eu já tenho. Há alguém que esteve comigo nesses momentos todos, lambendo feridas, segurando minhas mãos, desmanchando maldades alheias. Houve alguém comigo naquela festa, naquele abraço de despedida. Houve alguém comigo naquela volta da escola, naquela noite sem sono, naquela cidade imunda. Cada vez que me feriram, ele esteve lá. Ele chorou comigo e me fez sorrir. Muitas, muitas vezes. 

Sim, essa é uma declaração de amor. Uma definitiva. Porque, finalmente, eu percebi que ele estará comigo até o fim. Os outros todos passam. Pessoas se vão, às vezes batendo as portas, às vezes batendo as botas. Mas ele não. Não importa o que eu faça. Não importa o que eu diga. Ele vai estar comigo. Ele vai precisar de mim. Estamos juntos agora, e isso é nosso final feliz. O amor é isso. É estar junto, é entender, é zelar. E eu quero fazer isso por ele, já que ele o fez por mim. Eu, que sempre o odiei, quero pedir perdão. Perdão pelas marcas, pelo sangue todo, pelas vezes em que o tratei como os outros lhe tratavam.

Perdão, porque eu levei 26 anos para entender que a pessoa da qual eu dependo e de quem eu nunca vou me afastar sou eu mesmo. Eu mesmo. Todo esse tempo e a resposta estava no espelho. 

Eu posso ser abandonado ou abandonar quem for. Eu posso ser rejeitado ou rejeitar quem for. Eu posso ser humilhado ou humilhar quem for. Mas eu sempre estarei comigo. Até o fim. E como pude odiar por tanto tempo alguém assim?

Hoje eu passei a mão pelo meu corpo, pelo meu mapa de desamores e consolei a mim mesmo. Depois delineei à caneta um novo sentido para cada traço. Se eu não amar quem está sempre junto comigo, por benção ou maldição, como vou me livrar do vazio que sempre senti? Sim, porque amor e vazio não podem coexistir em mim. O vazio sempre foi por falta de amor. Do amor mais fundamental. Do meu amor por mim. Fui eu quem me trouxe até aqui. Sou eu que me levarei de agora em diante. Então como não me amar? Como não me sentir seguro sabendo que não, que eu nunca vou me abandonar? Minha história sempre foi feita de abandonos. Entendem, então, porque eu preciso tanto dessa segurança que só agora encontrei?

Eu não sei de outro desbravamento que precisasse de uma navegação tão longa. Vinte e seis anos. Finalmente eu gritei “Terra à vista!”. Vinte seis anos. E só agora eu descobri que existo. Está na hora, portanto, de traçar novos mapas. De desamores nunca mais. Afinal, ninguém pode ser tão importante assim a ponto de mudar o que eu passei a sentir por mim.






sábado, 1 de fevereiro de 2014

Solar


Primeiro Clarissa amanheceu os olhos. O traçado grosso do lápis sumiu um dia. E suas íris ganharam, então, um ar mais azul. Depois foram os lábios que empalideceram. De vermelho tornaram-se rosa-aurora. Depois, foram as frases que perderam muito de sua força, mas também muito de seus palavrões. Clarissa amanhecia inteira.

Depois foram os dentes que surgiram, não em rosnares, mas em risos. Risos leves. As roupas ganharam flores miúdas e o cabelo voltou ao seu loiro natural. Ela inteira tornava-se dia, entre a própria surpresa e desconfiança.

O mais difícil, ela percebia, era livrar-se das próprias convicções. Era afastar-se da imagem antes criada. Era ser boa e deixar que a vissem boa. Antes, má, Clarissa achava-se especial de alguma forma. Ela era singular e fazia-se respeitar por isso. Agora ela era uma mancha pálida.

A princípio era assim que se via, como uma mancha pálida. Depois, porém, notou que não era uma mancha. Era um ponto. E não era pálida, era brilhante. Um sol em uma tarde de verão. Logo ela que sempre quisera ser lua em noite de tempestade.

Clarissa sempre despreza seu lado mais luminoso. E, agora percebia, era esse o seu melhor lado. Era brilhar o seu destino mais íntimo. Não na solidão escura, mas no dia claro. Não à margem das nuvens, mas no céu azul. Azul da cor redescoberta de seus olhos.

Não havia motivo para as lágrimas de antes, assim como não havia motivo para o sorriso de agora. Mas que brotasse, mesmo assim, mesmo sem motivo. O motivo Clarissa inventaria e ele teria o mesmo tom do canto das cigarras. 

Clarissa conhecia uma história sobre o canto das cigarras. Não aquela da formiga. Clarissa não queria fábulas e suas morais. Ela conhecia outra, mais bonita.

Aquela de um homem, um escritor, que recolheu-se à montanha para encontrar a paz certa de escrever. Era verão e no princípio tudo parecia perfeito. Não era. Havia o canto das cigarras. Embora dito assim pareça idílico, ouvido incessantemente é enlouquecedor.

As cigarras não suspendiam por um segundo o canto estridente e o escritor parecia não mais aguentar. Até que ele mesmo decidiu ser uma cigarra. Transmutar-se em uma, ficionalizar-se. Criou, então, um conto muito longo e muito belo sob o ponto de vista de uma cigarra.

Aquele canto que aos homens incomodava era, para a cigarra, a própria Clair de lune. Era uma canção que falava de amor e louvava a vida. Louvava o verão e o calor que lhe permitira escapar da escuridão profunda da terra. Era um canto de celebração que só duraria enquanto a vida durasse.

Quando o homem terminou seu conto, não ouvia mais o canto da cigarra. Ouvia a música.

Clarissa precisava disso também. Não da tristeza retumbante e profunda que lhe garantia um certo charme, acompanhado da vontade de cortar os pulsos. Ela precisava dessa alegria que, a princípio, incomodava tanto quanto o canto das cigarras. Ela precisava achar sentido em ser feliz. Viciar-se na felicidade assim como fora, algum dia, viciada na amargura.

No momento em que o fizesse, sua felicidade não seria mais estranhamento. Seria só natural. Natural como a luz do sol. Natural como seria natural uma Clarissa ser clara, ser solar.