quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Ao que me deixa



Eu e ele nos encaramos com sorriso sacanas no rosto.

Terminou.

Fizemos o que podíamos, descobrimos o que queríamos e foi, no fim, muito mais do que imaginamos que seria. Não há agora o que se fazer. Há um abraço rápido e desajeitado, como são todos os meus abraços, e então ele segue sem olhar muito para trás.

É. Ele foi de arrasar. Ele terminou com minhas crenças e me deu uma ousadia antes impensada. Ele me fez viver ao som de Lana Del Rey. Sim, ele me deu asas, rodas e a noção da minha capacidade.

Claro, ele também me levou ao chão. E nem sempre por bem. Muitas vezes ele me deixou chorando sozinho, fez com que eu me arrependesse de tudo, obrigou-me a repensar cem vezes a vida inteira.

Por outro lado, ele me mostrou que algum poder eu tenho. Que eu posso transformar meus passos e, mais importante, transformar a mim mesmo. Ele mostrou que sempre há uma saída, sempre há uma solução, sempre há uma chance. Sim, isso é verdade, ele me deu buquês de chances.

Ele também me disse coisas felizes, espocando champanhe na sala de estar nova. Já no escuro, ele me sussurrou maus agouros, fechando minha boca para que eu não gritasse. Tudo foi necessário. Champanhe e escuro.

O melhor dele, porém, foi me fazer aceitar o pior de mim. Foi me fazer aceitar e amar meus defeitos, que nunca foram poucos. Acho que no fim o amor faz isso: aceitação.

Depois de tudo, só o que eu tenho a dizer a ele é isso. Eu te amei, 2014. Obrigado por cada um de seus dias!

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

No escuro



Você nunca tem como saber. O que se passa dentro do outro. O outro é mistério. Mais do que o eu? Talvez mais. Você nunca vai saber o que uma frase, um olhar, uma, só uma noite, uma lâmina cega, uma ameaça vazia, você nunca sabe o que isso pode causar no outro. O outro é profundo sempre e não se mostra nunca.

Você não pode saber da música que ele canta por dentro, do livro que escreve em si todos os dias. Você não pode saber dos traumas que o corroem por dentro, feito ratos em edifício abandonado. Você não pode saber dos comprimidos que o outro esconde, parcimoniosamente, desde o dia em que decidiu tomar todos juntos. O outro é abismo. E abismo que não olha de volta, desvia o olhar, o esconde por trás de lentes espelhadas.

Você não sente o que o outro sente. E o mundo, meu Deus, é sentir. É sempre sentir, independente do que aconteça, independente do que diga a razão. O mundo é o que se faz por dentro. E o dentro do outro você não conhece. Você não pode ver. Você não pode entrar, por mais que bata.

Você não sabe da pulsação acelerada, da arritmia, da falta de ar. Você não sabe porque sangue, coração e pulmões ficam por dentro. Você não saberá nunca, a menos que o outro fale. E o outro não fala. É cofre com senha perdida. Ou há senha e você não a sabe. Há uma palavra, na verdade, que faria o outro se abrir. Mas ele não a diz. Não a dirá jamais.

Você não sabe a tortura que uma coisa simples, banal, pode ser para o outro. Ou você sabe porque também a experimenta com fobias inofensivas, mas você finge ignorar. Você finge, por puro egoísmo, que com os outros é sempre diferente. Você finge que ele não pediu ajuda já. Finge que ele não mencionou alguma vez, indiretamente, o que aconteceu, as janelas fechadas, o descontrole, a sensação de ódio maior do que a própria sensação. O outro é sempre indireto e isso como que autoriza você a o ser também.

Você nunca sabe o que é a arma apontada para a cabeça do outro. Mesmo a arma invisível e inútil, sim, porque o outro se mata antes, por dentro mesmo. Se intoxica com o que sente, fica a ver o mundo rodar, a bile amarga enchendo a boca, o coração explodindo no peito. Por nada. Por nada, você pode dizer. É, mas você não sabe que monstros há no nada alheio. E você nunca vai saber, não enquanto o outro deixar você do lado de fora, sozinha como uma criança perdida no escuro.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Explicações

Eu me sinto elogiado quando afirmam que tenho capacidade para dar aula em faculdade. Porém, fico constrangido quando a esse comentário segue a seguinte frase: “Você está perdendo tempo aqui!” ou uma das suas variações: “O que você está fazendo, então, em uma escola estadual?”.

Eu não compreendo, de verdade. Sempre imaginei que os alunos das escolas públicas merecessem, também, profissionais qualificados. O senso comum parece afirmar o contrário. Paciência, então.

Mesmo assim, vou tentar explicar porque não estou perdendo tempo. Vou explicar, além disso, o que estou ganhando.

Primeiramente, preciso dizer que, de tudo, eu ainda acredito na arte. Faço dela meu evangelho, com direito a salmos, provérbios e orações. Uma frase que me guia muito é aquela dita em “Hoje é dia de Maria: “O que há de ser tem muita força”.

É isso que tem me guiado bem: o que há de ser. Eu não teria conseguido ser digno de qualquer elogio se não tivesse a experiência que tive, com alunos de verdade, em escolas de verdade. Faculdade nenhuma, mestrado nenhum, por melhor que sejam, preparam para um dia depois do outro em uma sala de aula. Só a prática faz isso.

O que há de ser é mais profundo, porém. Hoje, eu consigo perceber exatamente o que precisava aprender em cada escola em que eu estive. Especialmente agora, na 8 de Maio. Se eu não tivesse vivido esse ano, eu seria alguém pior.

No começo desse ano, eu estava muito pior. Como eu já disse, às vezes você entra no magistério com a intenção firme de modificar realidades e, depois de algum tempo, você percebe: essas realidades é que modificaram você. E para pior. Era assim que eu estava e havia muito que eu precisava aprender e melhorar.

Por isso, o que há de ser me colocou na 8. Para que eu aprendesse. Para que eu percebesse que toda teoria dá certo com um pouco de disposição e muito de vontade. Que liderança é acreditar no que faz, acolher, trabalhar de forma humana com seres também humanos. Pessoalmente, percebi que eu podia relaxar, liberar o riso, me permitir ser tocado. Sim, eu também me fiz mais humano. Aprendi que os colegas podem fazer a diferença em cada dia. Aprendi que a gente pode esperar ansioso pela segunda-feira (ou melhor, pela terça) porque o trabalho pode ser prazer, não suplício.

É interessante como essa mesma fala se repete nos demais que trabalham ali. É um prazer estar na escola. Foram muitas as vezes nesse ano em que senti o que os ingleses definiriam como “Bliss”. Algo acima da alegria comum, mais próximo de uma grande euforia. Alegria essa por estar entre pessoas de quem eu aprendi a gostar, por ter espaço e incentivo para fazer o meu melhor, por poder estudar e me qualificar sempre mais, por poder rir, confraternizar, contar com o apoio de cada um.

Não estou aqui perdendo tempo. Estou aqui ganhando aprendizado. Estou aqui ganhando experiência. Estou aqui aprendendo a ser quem eu quero ser. Nós somos as somas de nossas experiências.

Tudo que eu preciso é agradecer por esse ano que foi fantástico e que me mostrou tanto sobre o que eu acredito, sobre uma educação de qualidade e, acima de tudo, capaz de transformar vidas. Obrigado à direção toda, por me fazer acreditar. Aos meus colegas, por serem fantásticos. E, principalmente, aos meus alunos, porque foram eles que mais me ensinaram. Se um dia eu chegar à faculdade, é porque, antes, aprendi o que precisava para estar lá. E isso não me parece, de modo algum, perda de tempo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Ten times or more

Sailors fighting in the dance hall.
Oh man!
Look at those cavemen go.
It's the freakiest show.
Take a look at the lawman
Beating up the wrong guy.
Oh man!
Wonder if he'll ever know
He's in the best selling show.

Às vezes você só queria que o dia terminasse bem. Queria um sorvete ao pôr do sol, antes de voltar para casa. Queria olhar, carinho, sorriso, para ter certeza de que tudo mais também terminaria bem.

Não é assim. Não pode ser. Porque às vezes você só é sozinho. E isso é tudo. É tudo porque não muda, porque já foi assim desde o começo. Seu número é um monólogo. Não avisaram? Não há deixas. Você não leu o programa? Não viu os cartazes? Não olhou as críticas nos jornais? Essa é uma peça de um homem só. 

Não há alguém nos bastidores para entrar e fazer parte do show. Não há ninguém para mexer nas luzes ou trocar os cenários. Você escreve, você encena, você aplaude.

Você achou que o número seria cômico, é isso?! Achou que seria de fazer rir? Não é, meu bem. Aventura não tem. Romance não também. É sério que você topou sem saber? Que ensaiou sem notar? Que subiu para a estreia ainda imaginando que as coisas terminariam bem? Não... Não, meu bem. Não é assim. Muito menos o fim. Deixa eu contar:

As cortinas se fecham com você sozinho no palco e é assim que o espetáculo termina. Lá atrás, você continua sozinho depois. É assim que está no roteiro. É isso que dizem as rubricas. Você continua sozinho, enquanto as luzes se apagam e ninguém aplaude. Ninguém vem com rosas e elogios. Ninguém espera no camarim. Termina assim. O escuro vermelho, o silêncio sem pigarro, o eco sem resposta. E você sentado ainda, abaixando a cabeça, sem saber o que fazer de si depois. Talvez você possa chorar. Isso se o diretor deixar. Se ele não achar muito clichê. E se ele achar, talvez você chore sem ninguém saber. Você estará sozinho, no fim. Então ninguém vai ver.


domingo, 2 de novembro de 2014

Nameless

O que eu sinto não tem nome. É vazio. Vazio até disso, até de um nome. O que eu sinto é tão pouco que não nasceu, não foi visto a olho nu, não foi descoberto, nem será. Nem colocado em um microscópio, nem pesado dentro de um balão, o que eu sinto não deixará traços. O que eu sinto acontece no vácuo. Não naquele de embalagens, em que o plástico não deixa espaço para o ar. É o vácuo espacial. Imenso, mas vazio. Espaço sem espaço. Fundo sem fundo. Universo sem mundo. É o que eu sinto.

Sinto isso enquanto ando pela casa e deixo as luzes escuras. Sinto isso mais quando estou acompanhado, o que é incrível. Sinto um cansaço de alma, mas esse é velho companheiro. O cansaço de agora não é de alma. É de nada. Um sentimento de nada. E como completa. Como repele qualquer outro sentimento.

É o nada que me faz passar as mãos no rosto, na  hora de banho, e encostar, então, a testa na frieza dos azulejos. Quase como se quisesse chorar. Mas não choro. Eu nunca mais chorei. Às vezes meus olhos marejam. Mas nunca é o suficiente. Eu quis chorar hoje, sem razão. Ou melhor, em razão das dores que não são minhas. Não é fácil chorar lágrimas alheias. Eu quis chorar pelo acidente de ônibus. Por esse de agora e pelo mais antigo. Chorar pelo meu próprio acidente, os 17 que eu mesmo ainda vou morrer. E de repente tudo virou uma questão de forma. De primeira ou terceira pessoa. De repente o sentimento esvaziou, sugado pelo vácuo que há em mim.

O que eu queria era ser amado.

No fundo o vazio é esse. Estou vazio porque não há quem me ame. Não inteiro. Seria pedir muito de mim que eu me doasse inteiro, que eu me deixasse desvendar, que eu me mostrasse fraco e humano, capaz de pedir, humildemente, pedir um carinho. Não. Sou altivo demais. Então eu não me entrego por inteiro. Nunca. Sempre há uma parte minha conectada, fria, distante. E assim, sem jamais me entregar, eu jamais pertenço. Eu sequer ME pertenço. Não como eu gostaria.

E então vêm os contras. Sempre os contras. Estou sempre disposto para eles. Para meus poréns, para minhas vergonhas, para meus desastres. Para eles sou todo prosa e poesia. Para mim sou cactos, sou ouriço, sou porco espinho, como a menina doente me chamava.

A menina vai morrer em breve. Como sabíamos que faria. Ela ao menos virou moça. Nem todas viram.

Eu vejo um pouco do mundo – sempre pela proteção das janelas – e logo fico com inveja. Eu queria mais vida, mais livros meus, mais festas, mais, mais, mais. Mas sou tão menos do que isso. Tão menos do que aqueles que ainda não tem a consciência do que são. Consciência. É esse o problema? Eu não sei a resposta. E não penso nela. Então volto à janela e deixo minha mente ser tomada por uma música qualquer. A música inebria e distrai. Enquanto canto não penso. E enquanto não penso, fico vazio. Puro vácuo.

domingo, 19 de outubro de 2014

I walk alone

Um diário de solidões, como eu sabia que seria, assim têm sido os meus dias. A solidão é um risco. É o mesmo risco de quando estou em um lugar muito alto. Ao mesmo tempo em que eu temo a queda, eu a desejo. O risco da solidão é desejá-la. É se acostumar a ela, é descobrir que o sossego da própria companhia é preferível à agitação da casa. O risco todo de se estar só é o de se descobrir profundamente feliz assim. Descobrir que você se basta e, melhor, que sozinho você não se perturba.
"I walk alone
Every step I take
I walk alone
My winter storm
Holding me awake
It's never gone
When I walk alone"

domingo, 12 de outubro de 2014

Somos todos Peter Pan



Na verdade, não sei se algum dia nos tornamos adultos. Por enquanto, somos crianças crescidas e nossos medos cresceram junto com a gente.

Antes, era só o medo de um quarto escuro. Agora, é o medo da solidão que ronda.

Antes, era medo do que não conhecíamos. Agora, é o medo de tudo que sabemos existir. 

Antes, havia o medo do futuro, mas ele vinha sempre misturado com o desejo, com a expectativa. Agora, o bebemos puro.

Crescemos e demos corpo, vez e voz aos nossos medos todos. O medo de não ser aceito, de ser abandonado, de não saber o que fazer. Todos eles continuam, só que maiores.

Houve um tempo em que eu acreditei que um dia saberia as respostas. Hoje sei que não. Somos só crianças que fingem saber, como um dia fizeram os nossos pais. Crescer é isso também, é perceber que nossos pais continuam na infância, só que eles aprenderam a fingir que não.

Somos todos pequenos diante das inseguranças, somos ainda chorões diante da vida. Não sei se isso vai mudar algum dia. Nem sei se deve mudar. Afinal, que época melhor para morar do que a infância? Mas precisamos, isso sim, resgatar mais do que os medos. É estranho que os alimentemos e, no entanto, deixemos morrer a esperança, a expectativa, a fantasia que são, elas também, partes da infância.

É estranho que, podendo escolher só alguns brinquedos para a caixa de lembranças, tenhamos escolhido justamente os brinquedos quebrados. Está na hora de resgatar o que esquecemos. Está na hora de lembrar que ser criança é, sobretudo, ter fé. Que possamos resgatá-la, de algum sótão, de algum porão, de algum armário velho e trancado. Que possamos voltar a acreditar. Que possamos, mesmo que por um só dia, assumir a criança que fomos e tentar fazer com que cresça nela mais a esperança do que o medo. Não nos tornaremos adultos, é bem verdade, mas assim seremos, pelo menos, crianças felizes.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Uma peça

Hoje, saltou-me aos olhos o texto da Martha, no ZH. Segundo a cronista, agora, todas as peças de teatro anunciam-se como comédias, pelo medo de não encher a casa se anunciarem algo mais profundo, que em vez de fazer rir, faça chorar, faça pensar, faça se angustiar.

Eu sou o exato oposto. No passado, já me acusaram de ser muito profundo, muito grave, melancólico mesmo, anunciando a tristeza de longe, em verso e prosa. Isso sem me conhecer. Sem nunca me conhecer de verdade. Como se eu fosse um pouco peso, um pouco Clarice. Como se eu fosse o próprio cão negro da depressão, caçando incautos.

Eu me anuncio como tragédia, é bem verdade. Mas de longe. E é, de repente, pelo exato motivo que ressaltou a Martha. Comédia atrai mais gente, tragédia afasta. Eu sempre quis afastar, por isso a propaganda enganosa.

Sim, enganosa. Quem chega perto, compreende logo que sou outro. Que há riso nas minhas peças e peças no meu riso. Sou outro e esse outro é quem me domina fora dos meus textos, longe das minhas lágrimas de papel. Esse outro que ri, que brinca, que é quase o centro da festa. Sou outro quando me permito ser.

Tanto, que uma colega – que nunca havia me lido – destacou outro dia: “Nossa! Que lindo aquele teu texto sobre a chuva. Eu conseguia te imaginar.... Mas fiquei esperando acontecer alguma coisa, uma resvalada, um tombo, um tropeço. Seria mais teu estilo, uma coisa engraçada.”

Sou shakespeariano ou pastelão? Já não sei. Acho que isso depende de quão perto você está disposto a chegar.

Independentemente dos anúncios que lanço, meu teatro sempre acontece por dentro dos olhos.



terça-feira, 30 de setembro de 2014

Só pela promessa

Continua a chover e eu saio novamente, dessa vez para ir ao correio. A chuva tamborila sobre o meu guarda-chuva e me lembra, estranhamente, o barulho de uma máquina de escrever. Vem, então, a vontade de compor outro texto qualquer.

Prometo a mim mesmo que o farei, quando voltar para casa. Por enquanto, caminho rápido enquanto sacolas de lixo voam para as esquinas, sem que eu veja de onde. No correio, eles já sabem o que me vem por pacotes semanais. Livros.

Eles sabem e os outros todos também. São os livros, sempre os livros. Já sou conhecido, desconfio, como “aquele dos livros”. É isso também um vício? Uma compulsão? Queria ser a metade do nerd que pensam que eu sou. Eu seria rico, então. E espertíssimo também. Não gosto tanto assim de estudar. (Só não contem isso aos meus alunos.) Eu gosto é de histórias para tardes chuvosas. Eu gosto é de saber mais e de viver vidas de tinta e papel.

A garoa, na volta, continua a datilografar sobre o meu guarda-chuva. E, de repente, eu compreendo que ela escreve muito melhor do que eu. Ela escreve poesia pura, do tipo que se sente e não lê. Já vejo de antemão que meu texto não será bom. Que melhor teria sido começar o livro que acabou de chegar. Sou aquele dos livros, afinal.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

As três palavras secretas

Desse lugar, nem a água eu quero levar. Despejo-a fora, na parada de ônibus, com cuidado para que nada me respingue. Lembro-me, então, da frase que ouvi de manhã: nojo é pior do que ódio. Concordo, mudo, balançando a cabeça sozinho, enquanto os que passam me olham, desconfiados. Se eu não balançasse a cabeça, a desconfiança ainda seria a mesma. Aqui eu sou “diferente”. E, aqui, o diferente é ruim. Que me olhem assim, eu não ligo.

De qualquer modo, nojo e ódio se reúnem sobre mim enquanto estou na cidade que deveria, ela inteira, atender pelo nome de uma das suas “linhas”. Ojeriza.

Nem a água daqui eu quero levar. Nem a poeira que tiro de mim com um banho sempre mais demorado. Nem o mantra que repeti ao longo de todo o dia, como uma ode à ignorância, como se minha mente fosse um grupo irrequieto de alunos da primeira série, gozando da coleguinha estúpida. Três palavras que me ensinaram e que, desde então, eu não pude esquecer. Três palavras que não, eu não posso dizer.

(CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO.  CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAAAAAAPIVARA DE LENÇOOOOOOOOOOOO!)

Agora eu entendo o que me disseram. O que me repetiram nas portas, o que me comentaram à meia voz, o que me falaram pedindo segredo. Agora eu entendo o quanto a ignorância não tem limites. O quanto a vontade de aparecer pode ser maior do que a de fazer. O quanto a vida é burra, meu Deus. Mas só às segundas.

Em um cavalete próximo, um candidato a deputado qualquer me olha de soslaio. Em seu terno bem cortado, ele não parece ter alguma vez esperado um ônibus na chuva. Ele não parece ter passado o dia com nojo e náusea, repetindo em silêncio as únicas três palavras que realmente tinha vontade de dizer. As três que eu não pude e não posso contar.

(CAPIVARA. DE. LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO.  CAPIVARA DE LENÇO.)

Debaixo do nome do deputado, três palavras também. Família, Fé, Sociedade. Se eu prometesse lutar pela família, fé e sociedade, eu poderia, Senhor Deputado, não esperar o ônibus na chuva? Eu poderia não ter uma vida medíocre em que é preciso passar pela ojeriza todas as segundas? Em seus palácios há ignorância, Senhor Deputado? Se há, então não vou para lá. A ignorância me fere mais do que o ódio. É dela que meu nojo sempre brota.

O deputado continua a sorrir. Se ele vier, terá carro sempre à espera. E pessoas deitadas sobre o asfalto, feito os capachos que são, para que ele os possa pisar. Para mim há o “não” e o ônibus que também não vem. Há ainda a fofoca que tudo domina e as disputas mais bestas que já vi. Minha única vingança é repetir, sem parar, as três palavras que me deram, como se elas fossem um escudo. Como se, ao pensá-las, eu pudesse não fazer parte do que abomino. As três palavras secretas e agora tão minhas.

(Capivara de lenço.)

Uma caminhonete cinza chega e para. Uma salvação. Nem todos os cavalos são brancos. Eu subo e consigo sorrir. Consigo sorrir quando saio dali. A música no rádio é alta e eu fecho os olhos, sentindo o vento no rosto. Quando os abro, o motorista pergunta, divertido: "O que foi?". Eu lhe respondo que sorrio assim porque amanhã é terça. E toda terça a esperança me renasce. Ele sorri também, balançando a cabeça como quem não entende, mas se diverte mesmo assim.