quarta-feira, 29 de maio de 2013

Inconveniências

Ele chegou com todas as malas de quem vem para ficar. Abraços dados, sorrisos lindos, uma conversa de embalar sonhos...

Ele chegou e transformou a casa toda. Houve riso, alegria, esperança, ousadia... Com ele veio uma felicidade impossível de explicar. Uma felicidade que espocava nos cantos e só podia ser traduzia mesmo em brilhos de ofuscar.

Quando ele chegou, foi tratado como toda boa visita. Cardápio especial, passeios planejados, o melhor quarto da casa, o direito de escolher a programação da TV e o horário do banho.

As contas foram crescendo. Era mais uma pessoa na casa e ele não dava mostras de querer partir.

Tentaram, então, retornar ao feijão com arroz, resumir os passeios à vizinhança, convencê-lo a não demorar tanto no banho... Tudo em vão. Ele exigia o melhor.

Passou em dois tempos de alegria a incômodo. 

Perguntaram, casualmente, se ele pretendia ficar muito mais... “Para sempre”, ele respondeu, satisfeitíssimo e gordo (engordara muito desde a chegada). Fingiram alegria, mas no íntimo, cada um não via a hora dele partir.

A segunda investida foi mais direta. Perguntaram se ele não planejava ajudar na casa: pagar luz, água, comida... Qualquer conta paga seria bem-vinda. Ou pelo menos uma mão na faxina...

Ofendeu-se. Ele fez, então, um discurso muito longo e ultrajado sobre o quanto eles eram materialistas e mesquinhos. Mesmo assim, nem por chantagem ameaçou ir embora.

Naquele dia bateram-se portas e os últimos resquícios de brilho se foram.

Na manhã seguinte, o convidaram para um passeio de reconciliação. Enquanto um o distraía na sala, os outros empacotavam, ligeiros, as coisas todas dele e as carregavam no carro. 

Finalmente o passeio... Foram todos. Foram longe e foram para bem dentro de um descampado.

Quando chegaram lá, o descarregaram. Do porta-malas tiraram todas suas tralhas e despejaram ali mesmo, sobre a estradinha de terra. Ele que ficasse! E que não voltasse jamais ou o próximo destino seria outro! Entendera? Outro...

Enquanto voltavam para casa, satisfeitíssimos, a menorzinha deles verbalizou o sentimento geral:

— Foi-se tarde. Bem tarde. Fizemos o melhor a se fazer. Não que o Sr. Idealismo não seja boa pessoa... Mas quando ele não nos ajuda em nada, nem nas contas a pagar, a melhor atitude a se tomar é mesmo desfazer-se dele.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Para maritacas


Lívidas, as maritacas esperavam que o chefe do bando desse, enfim, uma sentença. Palavras como “expulsão” e até “morte” pululavam em suas cabeças coloridas. O chefe, muito austero, repassava mentalmente história toda, longa e vermelha.

Começara assim: haviam feito uma seleção entre todas as maritacas do bando para que uma fosse escolhida para instruir os filhotes em seus primeiros voos. Depois de alguns testes, Lola foi a escolhida.

Acontece que, embora tenha se saído bem nos testes teóricos, Lola era, na prática, uma desavoada. Lola não conseguiria ensinar sequer um avião a levantar voo. E olha que eles nem sequer nascem filhotes!

Pobres Maritaquinhas.

Elas não aprendiam. Não aprendiam simplesmente. E isso era uma dificuldade para o bando todo. As maritacas cresciam sem aprender a voar e, portanto, precisavam ser alimentadas, alimentadas e alimentadas por outros. E que fome tinham!

As primeiras alunas de Lola já eram quase adultas e não arriscavam sequer um rasante. Cobrou-se que Lola as fizesse voar. Fosse da maneira que fosse.

Lola, pressionada, fez com que suas alunas subissem no galho mais alto da árvore mais alta do morro mais alto da floresta já alta em que viviam.

De lá, ela as atirou, uma a uma, para que voassem. Era um método medieval, é preciso admitir, mas se funcionara antes, por que não agora?

Péssima ideia.

Morreram todas.

As raízes da árvore mais alta do morro mais alto da floresta já alta transformaram-se em cenário de catástrofe. Eram penas, asas, pés e biquinhos todos espedaçados e rubros de sangue.

Os fatos todos foram levados ao chefe do bando.

— Mais de cinquenta, Senhor. Mais de cinquenta. Lola não respeitou sequer as maritaquinhas que nem pena tinham. Ela as atirava e atirava e atirava. Se soubesse ensinar, não teria feito o estrago que fez. — Dizia uma.

— Ela é uma incompetente, senhor. Por pouco não jogou até meus ovos lá de cima! Algo precisa ser feito. Não queremos mais essa louca instruindo os voos de nossos filhotinhos. — Dizia outra.

O chefe pensou, pensou e pensou. Lola fizera o teste. O teste garantia que Lola ficasse no bando. Lola não podia ser rebaixada. Lola não podia perder sua função. Ao mesmo tempo, Lola não podia continuar com aquilo, ou terminaria com os filhotes todos. O que fazer de Lola?

Emplumando-se bem, o chefe perguntou:

— Digam-me, quando fui escolhido chefe, não era Lola quem gritava meu nome por entre as maritacas?

— Sim, Senhor, mas.... — responderam as outras.

— E não era ela quem dava algumas minhocas gordas aos indecisos para que me escolhessem também?

— Sim, mas...

— E não foi ela que falou bem de mim no alto dos galhos?

— Sim, mas...

— E não é ela a filha do meu grande amigo Mataco?

— Sim, mas...

— Mas nada! Já tomei minha decisão. Lola não será mais instrutora de voo – até porque essa chacina não pode continuar. Lola agora será fiscal das instrutoras de voo! Nomeiem outras dez maritacas, competentes(!), por favor, competentes(!), para que instruam os vôos. Lola fica responsável apenas por fiscalizar todas elas.

— Mas senhor, se ela não sabe nem ensinar, como vai fiscalizar?

— Por acaso isso é um desafio às minhas ordens? Vocês querem ser expulsas do bando?

— Não, não senhor...

Lá foram as maritacas, cabeças baixas, penas pálidas, cumprirem as ordens do chefe do bando. As maritacas mais competentes ganharam centenas de maritaquinhas cada uma. Deveriam instruí-las, não importava como. O chefe queria resultados, resultados! Mais aves para pegar comida! Mais aves para defender o bando! Vamos, maritacas, vamos, voando agora!

As instrutoras se desdobravam como podiam. As que se saiam melhor, recebiam mais cem alunos (sem que sua porção de grãos aumentasse um cisco sequer). A fiscal, Lola, desfilava entre elas, gorda (o cargo triplicara seus grãos de direito), enfeitada até com plumas de arara, mandando, ensinando e cobrando resultados.

As maritacas instrutoras gritavam, insatisfeitíssimas. Grasnavam até. “Assim não dá! Assim não dá! Assim não dá!”. Eram, porém, prontamente caladas. 

Lola cantava contente e cada vez que o chefe perguntava, ela se apressava em dizer: 

— Tudo correndo às mil maravilhas, Senhor. As maritacas estão satisfeitíssimas com seus cargos e seus salários. Fazem aulas de vôo que dão gosto de ver! São incríveis! E as maritaquinhas, então, dão até pirueta no ar. Apenas algumas não voam... Mas o problema é das instrutoras, o senhor sabe como é. Nem todas são competentes como eu...

Tudo mentira. Lola sequer olhava o trabalho das coitadas. Apenas sentava em seu ninho e pedia que não a incomodassem.

Mas o chefe acreditava, também sentadinho em seu ninho, sem conferir nada de perto. Acreditava em tudo e se orgulhava da promoção de Lola. Afinal, encontrara a vocação daquela desavoada. Ele ria, satisfeito, grande, gordo...

Outros problemas surgiram no bando e a mesma solução foi adotada. O vigilante que dormia no seu turno e não podia, por isso, continuar no cargo foi escolhido como supervisor dos vigilantes. Era um trabalho mais burocrático e mais afeito, portanto, aos cochilos. O coletor de comida mais imprestável foi colocado como supervisor de coleta, assim era só conferir a carga que os outros traziam. A maritaca que gritava totalmente fora de tom foi promovida a regente do coral, assim ficava de boca fechada.

O chefe, cada vez mais tranquilo, governava soberano do alto de seu ninho. Recebia relatórios lindos de seus subordinados, mais falsos do que maritacas amarelas. Nos galhos abaixo, a desordem, a incompetência e o caos chefiavam mais do que ele. Mas não por muito tempo. 

As coletas passaram a ser uma bagunça, as instrutoras não conseguiam dominar as maritaquinhas e não podiam contar em nada com a fiscal, o coral nunca mais conseguiu alcançar o tom, outros animais invadiam o bando e matavam às dezenas, sem que os vigilantes vissem qualquer coisa, afinal, faziam o que queriam enquanto o supervisor dormia.

Não muito tempo depois, o chefe chamou suas maritacas assessoras e conselheiras, queria saber como andava o bando. 

Nada. 

Chamou de novo.

Nada.

Ele então notou como andavam silenciosas as maritacas... Mas que diabos estava acontecendo? Desajeitado, o chefe desceu do ninho para ver o que havia com o seu bando...

Não havia, não havia mais bando. 

No império da incompetência, do descompromisso e do descaso, a fome, a falta de instrução, de vigilância e de melodia (sim, até de melodia) foram matando uma a uma as maritacas.

Abismado, o chefe (agora de ninguém) antes tão risonho e valente sussurrou trêmulo:

— Mas morreram... todas...

E foram essas as suas últimas palavras, ouvidas apenas pelo jaguar que o abocanhou.

domingo, 12 de maio de 2013

De um dia das mães


Foi no jardim, a Profe Marli nos fez ensaiar, ensaiar e ensaiar a apresentação do dia das mães. Havia uma música, provavelmente, e algum tipo de coreografia também. Não me lembro. No final, cada um segurando uma rosa deveria encontrar sua mãe no auditório e correr até ela.

A Profe mandou um bilhete para cada mãe, avisando data, horário e local. Minha mãe não recebeu o bilhete. Entre brincadeiras e risos e confusões, eu acabei esquecendo de entregá-lo.

Quando as cortinas se abriram, todos se preocuparam mais em procurar a própria mãe do que em fazer o que havia sido ensaiado. Batíamos uns nos outros, embasbacados, boquiabertos, simplesmente olhando e procurando nossas mães.

Quem encontrava a sua, apontava, comentava, ria com os outros.

Eu procurei por todo o tempo da música.

Quem sabe ela sentara lá atrás... Quem sabe ela estava escondida... Quem sabe eu não olhara direito...

A música terminou, o palco esvaziou, só eu fiquei lá, parado, de rosa na mão.

Lembro da Profe Marli ter soltado a própria filha – que era minha colega – e ter corrido me abraçar. 

As cortinas fecharam.

E eu não entendia...

Eu não ligava a ausência ao fato de eu ter esquecido de entregar o convite. Eu não ligava nada a nada...

Os alunos foram liberados. 

Lembro que naquele dia eu atravessei a cidade inteira com uma mão nas costas, agarrada firmemente à rosa.

Eu levava a rosa assim para surpreender minha mãe. Para que ela ficasse feliz. Para que me desse o abraço que me deu e dissesse que me amava, bem como disse.

Ela não fora à apresentação, mas eu sabia que estava em casa e que esperava por mim...

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Qual o sentimento mais doído?


O que se sente sozinho. Seja ele qual for.

Um amor não correspondido, uma amizade unilateral, um rancor corroendo o peito. O sentimento que dói mais é sempre aquele que não encontramos com quem compartilhar. Em mim, hoje, dói muito a esperança. Meus olhos estão quase verdes de acreditar. Eu só queria que acreditassem também. Eu queria que fossem ingênuos como eu. Que dissessem que os bons não morrem no fim do livro e que os maus recebem sempre algum tipo castigo. Não há quem o diga. Experimento meus olhos verdes e luminosos, miro os olhares de quem está à minha volta. Eles deveriam ser claros, azuis e verdes, mas eu só os vejo negros... Estou sozinho. Estou sozinho e não sei o que fazer da minha esperança. Então ela me dói.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Da tabuinha sobre seu colo


Eu queria poder entender tão pouco a ponto de pegar um papel de pão, o estojo com lápis de cor, e fazer um desenho para que você ficasse bom. Eu queria escrever em letra torta e colorida que sinto sua falta (que o amo) e que estou com saudades.

Eu mandaria para você o papel dobrado e saberia que, ao vê-lo, você sorriria e pensaria em mim. Eu queria depois ligar a outra pessoa perguntando se você tinha visto e se tinha melhorado. E eu queria ouvir, então, que sim, que você havia sorrido, levantado e dito que voltaria já pra casa, que já estava bem melhor e era hora de me ver de novo.

Mas...

Não há mais espaço para guardar papel de pão.

Os lápis de cor estão quebrando por nada, de velhos que são.

Minha letra não consegue ser torta outra vez.

Minha esperança encolheu toda a ponto de caber num bolso de trás.

Mesmo assim, mesmo sem desenho, mesmo sem cor, mesmo sem pão ou esperança, por favor, fique bom. Por favor, só isso, vô, fique bom.