quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Convite


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Formigas

Ele guardou, então, o seu melhor. Escondeu mesmo, como criança faria com o derradeiro brigadeiro. Guardou. E esqueceu onde encontrar. No fim da festa, sua parte mais doce, ninguém comeu. Nem ele. Nem eu.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Ladeira abaixo

É como descer uma ladeira. Uma ladeira bem íngreme e bem funda para dentro de si. Você começa a correr sem vontade, depois por gosto e, no fim, já não consegue parar.

Você quer parar de correr, quer continuar com a vida e suas coisas frágeis de andar, mas não consegue. Você desce desenfreado, como se suas pernas tivessem uma vida só delas. Como se elas descobrissem que foram feitas para correr e não quisessem mais, jamais, parar de novo.

E você corre e corre e corre, sem muito destino, sem muita direção, trocando os passos, se atropelando, sentindo o sangue inchar o nariz, como uma premonição da queda certeira.

Mas a queda não importa às suas pernas. E elas correm e correm e correm, cada vez mais rápidas, cada vez mais para o fundo. E, no fim, se não trilham o caminho certo, ou se são desengonçadas enquanto você queria ser elegante, não importa. Importa é que algum caminho se fez. E importa que você conseguiu ir mais fundo para dentro de si.

Eu sou assim. Sou assim, só que com a escrita. No lugar de pernas, dedos frenéticos. Dedos que no começo se recusam a correr pelas teclas, demoram, se espicham, reclamam. Mas que logo aprendem os caminhos da ficção e não querem mais descanso. Só querem o tec,tec,tec, rápido das teclas em que batem. E aí me desgoverno.

Aí perco a prosa e me preparo para a cara no chão. Hoje foi assim. Eu falava com uma amiga até não poder mais. E de repente a conexão falhou. E eu precisei fazer algo de mim. Peguei um texto começado, então. Esperança de ser um futuro segundo livro, publicado pela mesma editora do futuro primeiro livro.

Comecei sem tom e logo o texto se fez. E eu me desfiz. 12 páginas. Direto. Sem pausa nem para olhar ao lado. Depois um e-mail, longuíssimo, ao editor. (Sou dos que se descontrolam e escrevem, então, até mais do que aquilo que os outros tem paciência de ler). Esqueço que para meu meio tempo de escrever há um tempo inteiro de ler e responder.

Me podei de lá. Coitado, tão atarefado o moço e eu ainda a lhe despejar meu jorro vazio e vocabular. Ele precisa de espaço, entre minhas letras, para responder e respirar. A quem direciono então o castigo? A quem eu escrevo porque simplesmente não posso parar de escrever? A você!

Pois é certo. A você.

A você que não tem rosto, a você que nem sempre existe, a você que talvez nunca venha a ler essa prosopopéia que descamba – já rolando – a ladeira. Porque é assim que o escritor se sente. Sozinho.

Ele é lido, mas não sabe. Não faz ideia. A menos que você diga alguma coisa. Então tudo se ilumina. Mas você raramente diz. Raramente lê, decerto também. Não é sua culpa, meu amor. Não há tempo. Eu sei. Poucos desfrutam da inutilidade que é ler. Ou escrever, a propósito.

Inutilidade que salva, à qual eu dedico minha vida em altar nu de sacrifício, mas inutilidade para você, confessemos.

E nessa confissão as pernas/dedos finalmente tropeçam, em algum lugar entre o enter e a barra de espaços. Finalmente. Exausto, ralado e arranhado, mas de sorriso na cara eu paro. E eu paro como se tivesse valido a pena, mesmo que seja só para eu mesmo rir do tombo.



quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Ábaco


Até hoje aprendi
que o que de pior há
é ter que confiar em alguém
com quem não se pode
contar.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Chapeuzinho revisitada


Era uma mocinha, do alto de seus sete-oito. Vinha empertigada por uma calçada, eu ia distraído pela outra. Nos encontraríamos na exata esquina.

Eu vi o pavor crescer em seus olhos, contrastando com a força das que são mocinhas: é que na minha mão ela via uma guia vermelha, mas não via, por detrás do muro, que cão eu levava. Em sua mente de menina passavam descontrolados cachorros enormes e raivosos, pelos negros, dentes afiadíssimos, língua salivante, olhos de vermelho horror! Ai, meu Deus! 

Ela toda gritava por socorro. E ela toda se esforçava para manter a pose. Era mocinha. Não era criança de se assustar à toa. Enfrentaria. Tinha o que, imaginava, fazia das meninas mocinhas e das mocinhas mulheres: coragem.

As mãos brancas de menina segurando a mochila - e o grito. Os olhos, castanhos de menina arregalados de medo. As pernas finas de menina tremelicando nos últimos três passos. E toda ela mocinha. Toda ela valente, contendo-se. Toda ela disfarçando o medo, caminhando para o que viesse. Três passos faltando ainda. Será que eu paro? Será que eu corro? Atravesso a rua? Volto? Não! 
Vou! 
Três passos... 
Coragem!

Um. Mas e se for um Rottweiler?
Dois. Ou um Pit Bull?
Três! 

E o coração a se despedaçar por dentro.

Tum, tum. Tum, tum. Tum, tum...

O encontro.

TUM!


- Aaaaai.... Que fofo.


Fora mocinha até ali. Podia, aliviado o medo, voltar a ser menina. E o seu "Ai que fofo" escapou com o encantamento que só as crianças têm pelo que é delicado. Com a descoberta da inutilidade do medo. Com a desconfiança de que a vida é boa. Com a certeza de que sua existência estava salva, de que poderia, sim, no exato tempo, se tornar mocinha. Por enquanto era menina. E uma menina que teria o que contar na escola.

Eu sorri, maravilhado - que é meu modo meio novo de ser. Sorri do medo insatisfeito. Sorri da vida ganhando. Sorri da mocinha empertigada se tornando só menina. Era bela a tarde. E o Bag, meu filhotão doce de poodle toy, seguiu caminho abanando o rabo, estufado de elogio e sol.

sábado, 4 de agosto de 2012

Das últimas epifanias


Já era noite. E foi só quando caminhei sozinho que dei pela mudança. Era como se as peças soltas por dentro não estivessem mais chacoalhando. Como se as porcelanas quebradas tivessem sido tiradas, coladas, e então colocadas de volta, feito novas.

Nada mais de tilintares. Nada mais da sensação de incompletude, nada de vazio, de oco, de abandono por dentro. Eu estava, de repente, inteiro. Eu estava, de repente, completo.

Mas a mim não ensinaram o milagre gratuito. A mim nunca a graça veio "de graça". Eu só conheci o sabor das coisas pelas quais me atormentei. Até hoje só foi meu o que eu conquistei. E então aquilo. Então, quando dei por mim, meu sentido havia me encontrando. O mesmo sentido que eu procurei em tudo, tudo. O mesmo que eu já desistia de encontrar. De repente ali, inteiro no peito, como se fosse seu lugar mesmo. 

E era.

Mas não assim, pensei. Assim não...

É que se eu questiono o que de errado há, não é por simplesmente discordar. É porque sou uma interrogação mesmo. E o bom eu também questiono. Meu sorriso aberto já veio com a pergunta: E agora, Vinícius? Agora o que foi que você fez para se completar? O que foi, afinal, tão significativo para você ser encontrado pelo tesouro que buscava?

A resposta veio em flashes rápidos, epifânicos.

O tempo todo eu precisava encontrar esse tal sentido meu. E meu sentido passava por provar algo a alguém. (Sempre passa?) Por me mostrar merecedor. Por fazer alguém se orgulhar de mim. Quem? A quem eu precisava convencer? O perdão de quem eu precisava? A quem eu precisava provar? 

Aos meus pais. Poderia ser a eles. A eles que me adotaram com um amor imenso, primitivo amor, daqueles já desenhados desde as cavernas, em contornos de mãos. À mãe, que não pode ver o retrato sobre a cômoda, pela tristeza que aparece nele. Ao pai, cujo sangue uma transfusão fez correr em mim. Seria a eles? Não.

Ao meu amor, então. Precisava eu ainda provar algo a ela que é carne da minha? Que tem o meu mesmo gosto na pele e na boca? Precisava eu provar alguma coisa para alguém que até sonha o meu sonho? Que me compra o que eu lhe compro? Alguém cujos olhos eu posso ler e cujo pensamento jamais me é segredo? Não. A ela também não.

Porque os três me amam. E amor, caso se retribua, só pode ser com amor. Não há prova, não há perdão, não há convencimento. Em troca do amor o amor se basta. Não era a eles a minha prova. A quem então?

Ah, aos amigos. Aos poucos amigos. Não. Essa descartei de pronto. Desde meus primeiros passos são eles que me provam as coisas. Eles que me mostram o que não vejo. Eles que me olham com olhos sempre tão belos. E que me respeitam e admiram e amam mais do que eu mesmo. A eles tudo já estava provado. E por isso são tão meus.

Talvez aos tatus da Cratera! Aos bichos que de tão embolados estão, não conseguem suportar a luz, não conseguem ver o céu o brilho o ar o sol. Só vêem a própria barriga inchada. Só se fecham dentro de si mesmos, redondos e tolos, pensando que são, à parte, um mundo. Confundem a escuridão de suas pequenezas com o universo. Confundem as frestas de luz com milhões de estrelas. Confundem. Pobrezinhos.

Não. Os tatus são pequenos demais e perdem a proporção. Eles não enxergam sequer a Cratera, como verão para fora dela? Como verão fora deles próprios? Não verão. Jamais verão. Então, por Deus, não é a eles que eu preciso provar uma coisa qualquer.

Por Deus... Era isso? Deus? Era para Deus que eu precisava ainda provar? Era a Ele que eu precisava convencer? Sim, eu tive mesmo a ousadia de pensar Deus. Nele em quem eu sequer acredito. Mas por reflexo, quem sabe... Por lembrar do começo, do pecado original, do meu pecado. Do que me envergonhou e me fez e faz fingir que Ele não existe. Era a Ele minha prova? Não. Não porque se ele existisse, eu já teria provado. E, se não existisse, eu já teria desistido de provar. Não era a Ele porque minha própria imensidão não é tão grande assim. Nem minha ousadia tão intensa.

Era a quem então? Aos outros? Aos que eu não conheço? Aos que não me tem importância? Não. De mim não viria tanta benevolência assim. Em mim não há tanta vaidade para querer agradar o mundo. 

Então a quem? A quem eu precisava agradar? A quem eu precisava provar? A quem eu precisava me mostrar digno? A quem eu precisava me mostrar completo - para só depois o ser realmente? 

Silêncio. Noite. Árvores. Gente sorrindo para gente. Eu sorrindo sozinho. Bobo de felicidade por estar completo. Tentando, ainda, me compreender. E de repente a iluminação simples. De repente a resposta inteira, fechada, bonita, até. 

A pessoa para quem eu precisava provar...
A pessoa que precisava me perdoar...
A pessoa a quem eu precisava convencer...

Era, o tempo todo, eu mesmo.
E eu o fiz.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O preço de se despir


Nada me exaure mais do que ser Vinícius Linné. Então foi assim: cansado completamente de ser eu, tal como ator que já sufoca e sua e sofre por baixo da máscara, despi-me de mim. 

O movimento é fácil, a causa é justa - o escape é falso, mas isso não se conta. Passei então três dias em beatificada paz. Como que exorcizado, eu pude viver tudo de fora,  pude esquecer completamente os vazios, as escuridões, as poesias veladas, os abismos, os comodismos, as marcas, as fotografias, os reflexos, os enredos, os mortos, tudo.

Por três santos dias - em um ano de 363 outros - eu pude me imunizar contra o mundo. Pude me afastar o suficiente para me tornar insensível - especialmente a mim. Nada me doeu, nada me comoveu, nada me sensibilizou, nada me eriçou, nada me desvairou. Fui - e falo com a vergonha digna - um homem comum.

Fui um homem vulgar, que vê porcarias na televisão, que olha o mundo sem perguntar, que dorme longas tardes, que passeia com cachorro nas ruas, que responde a coisas simples, que não questiona, que obedece e que faz e que come e que só sonha dormindo.

Por estes três dias do que mais descansei foi das palavras. As palavras me consomem demais. Elas imperam em mim e me desgraçam, como se a desgraça fosse - e é! - minha única forma de conceber uma salvação.

Por três dias consegui - à custa da mediocridade - manter as palavras longe de mim. Nada li. Nada escrevi. Por Três Dias Inteiros.

Nirvana.

Passados os três dias eu precisava - como precisa todo viciado - me redimir com meus pecados. Precisava chamar todos eles de novo. Precisava fechar as janelas, escurecer o dia e invocar os demônios de volta. Eu precisava, enfim, vestir novamente o Vinícius Linné.

Uma parte importante dessa volta é, sem dúvida, a conexão. Estar conectado a outras pessoas. Uma infinidade delas, meus caríssimos demônios externos. 

No computador travo essa conexão. Junto com ela, porém, vem a dispersão. Por isso, no notebook não tenho internet. Isso me possibilita um trabalho mais concentrado, mais profundo, só espargido - levemente - por algumas gotas de paciência - quando tudo é difícil demais.

Eis que depois de me despir, ao querer me vestir novamente não encontrei essa peça da roupa.

O computador não ligou.

Então ele é tão meu a ponto de ser como eu? A ponto de não me querer mais porque eu - por bons três dias - não o quis?

Exatamente. O computador já não me quer. Tentou morrer para mim e levar consigo tudo que de meu eu tinha. Sim, porque não são minhas as roupas, os móveis, a casa, ele mesmo. Não me interessam profundamente as coisas. São meus - e muito meus - só os textos, as imagens, as pastas, as fotografias e tudo mais que eu mesmo fiz. E que agora está trancado nele.

Não sei. Não sei se há esperança de abrir novamente a caixa de Pandora, de reaver minhas posses pelo computador sequestradas. Meus anos de textos - dois romances prontos, inclusive; minhas fotos de contar histórias, meus artigos todos, minhas aulas, minhas músicas, meus vídeos, enfim, meus ouros e meus pequenos berloques por enquanto não existem.

Enquanto ele não voltar do conserto, eu não saberei se ainda tenho algo do que tinha. E por todo tempo em que ele não voltar, eu não terei como ser completamente Vinícius Linné. Talvez seja uma punição por eu não querer ser eu. E se for uma punição, ela acaba; o computador volta e tudo retorna ao mínimo status de normalidade. Se não for uma punição, se for castigo, se minhas coisas forem mesmo sumariamente trancadas em uma máquina, só me resta continuar incompleto.

Só me resta seguir sem um pedaço de tudo que eu fui - e este é sempre um risco ao se desfazer de si, mesmo que por um tempo. Até ter o computador de volta, sigo sendo este resto de eu. Não um Vinícius Linné. Minha pessoalidade sumiu. Por enquanto sou só um Linné. Científico, acadêmico, anti-niilista. 

Mas nem tudo são dores. Enquanto minha parte Vinícius adormece e fica incomunicável - intransponível - minha parte Linné dá jeito de adiantar sua dissertação toda. Livre de distrações e dos compromissos que o Vinícius arruma com as suas artes, é possível que o compenetrado Linné desembarace os fios de Clarice.

Assim sigo. Vazio de alguns demônios, inseguro quanto aos monstros trancados, compenetrado do modo como deveria ser. Linné até onde posso ver no espelho. E agora Linné? Agora é esperar. Esperar para ver se arrumo de volta minha parte Vinícius ou se precisarei tecer uma toda nova a partir de agora.

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Update: a caixa de Pandora voltou. Aberta, nada se perdeu.
Então, Vinícius Linné de novo.