sábado, 29 de dezembro de 2012

"I dreamed a dream"


Às vezes a gente sonha com algo bonito, muito bonito, na verdade. E, então, às vezes a gente passa a investir tudo que tem nesse sonho. Para alguns, esse tudo é dinheiro. Para outros é tempo. Para mim foi alma.

Eu sonhei um sonho e acreditei nele.

Chega um momento, porém, em que você percebe que não pode só viver de sonhos. A realidade vai entrando pelas frestas, vai fazendo desacreditar, vai corroendo qualquer tipo de confiança ou fé. E então você passa a não saber mais o que fazer.

Sonhar um sonho dá trabalho demais. Você não pode simplesmente desistir, então. Você tenta se convencer disso. Não, não “você”. Isso é sobre mim. Eu tento me convencer disso, então: de que não posso desistir. E então eu sigo mascarando inseguranças, eu sigo disfarçando medos, eu sigo fantasiando minha vontade toda de acordar.

Eu, logo eu que não sou dado a sonhos. Que não gosto das mensagens otimistas todas e que acho abraços em palestras a pior coisa que há. Logo eu, tentando me convencer de um mundo possível, contrário a todo esse real.

Hora de acordar.

É preciso sim desistir. 

Todo esforço foi grande e houve sim recompensa. Mas chega.

Chega de tecer fantasias, de bordar objetivos, de costurar planos e mais planos.

Eu já não posso lidar com isso. Eu já não posso ser leviano assim. Não sem me destruir por dentro, não sem me sentir mal comigo mesmo, não sem pagar o alto preço de um Morfeu qualquer.

Não há mais espaço para este mesmo sonho dentro de mim. Não há tempo para continuar de olhos fechados às minhas vontades, às minhas urgências e alinhavar outro sonho com fio fino.

É hora de acordar.

E quando acordo, estupefato, percebo que já não é com sonhos que eu lido mais. Há muito tempo. O que eu acreditava ser sonho já é minha realidade. Já é meu cotidiano. Já não é ilusão. E por isso foi tão importante acordar. Porque agora eu sei que estou lidando com realidades, com fatos, com números. Não com sonhos, não com letras, não com levezas só.

Essa é a minha realidade. E está na hora de parar de tratá-la como sonho. Está na hora de ser e não de querer. Está na hora, sim, de viver.

Acordado.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

E chove em Tapera VII


— Oi...
— Oi... Nossa!? Você?!
— É, eu voltei, lembrei de você e pensei... por que não?
— Nossa. Quanto tempo. Você fica até quando na cidade?
— Eu... eu não vim a passeio. Eu voltei. Meio que de vez.
— Mesmo?! E seus compromissos todos? O trabalho lá em Santa?
— Eu fui demitida... Tempos ruins, essas coisas.
— Ah... E a sua irmã, você ainda cuida dela?
— Não. É.... na verdade ela casou.
— Que bacana...
— É... eles se mudaram para o Paraná.
— E a sua tia, aquela que estava doente, ela conseguiu fazer o tratamento?
— Então... a tia Clara... ela faleceu.
— Nossa.... Sinto muito.
— É... no estado em que ela estava, acabou sendo o melhor.
— E o seu trabalho voluntário, com os animais?
— Eu acabei largando o abrigo. Foi algo passageiro. Eu não tinha mais tempo, sabe?!
— Hum... sei. E seus pais? Você ainda...
— Eles se separaram. Meu pai saiu de casa e nem telefonou mais. Minha mãe está morando sozinha agora.
— Ah...
— Bom, não interessa muito. Na verdade eu estive todo esse tempo pensando em você. E por isso eu vim até aqui. Porque se não viesse acho que eu iria explodir. Lembra qual foi a última coisa que você me perguntou antes de eu partir?
— Lembro. Lógico. Eu perguntei se alguma vez... você conseguiria ser minha. Só minha.
— Pois é. Isso. Eu agora vim aqui para te responder que sim. Que eu conseguiria ser sua. 
— Wow... é.... desculpe, mas essa foi uma pergunta que você já respondeu antes. E agora já não tem como mudar sua resposta. Eu sinto muito... Eu...

(trovões)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Ponto de saturação


As dores em mim não explodem subitamente. Não sou dado sempre a ações e reações. Preciso ser mais sutil do que isso. Eu acumulo não dizeres, vou somando desaforos, pequenas intempéries, minhas chuvas e tempestades de sol. Eu vou guardando tudo até sedimentar. Até acumular. Até que a saturação se dê por completo.

Eu evito os sinais prévios, os barulhos pequenos das rachaduras, eu evito demonstrar no sorriso triste qualquer marca do que por dentro se passa. Quando estou farto já é tarde. Quando estouro, eu estouro de vez.

E daí não meço palavras ou danos. Não perco tempo e não poupo sofrimento. Quando é minha vez, é minha vez. Quando eu quero fazer doer, eu sei fazer doer. E não em doses pequenas, não com uma tortura moderada e imorredoura. Eu uso toda maldade que se acumulou no meu corpo, todo veneno que encharcou meus ossos, todo fel que já não flui junto com o sangue. 

Enquanto sofro não mio. Em compensação, quando ataco, mato.


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Abandonar o barco


Foi assim: tiveram a ideia de construir um grande barco. Um barco como aqueles descritos nos livros, o barco ideal, o conceito platônico de todos os barcos, uma obra que contivesse em si todos os princípios e signos definitivos de um barco. O melhor barco, enfim, que o mundo já vira. Nenhuma delas, porém, entendia de barcos.

Chamaram engenheiros navais. Descreveram a eles como seria o barco. Eles compreenderam lá da sua maneira e viram na construção qualquer chance de ascensão (social ou econômica). Traçaram o projeto do barco, bem aquém do que descreviam os livros, era bem verdade, mas o dinheiro viria do mesmo modo, de forma que foram deixando por isso mesmo.

Foram a elas, mas elas estavam tão perdidas nos sonhos do barco ideal que já flutuavam num mar de imaginação ignóbil, ignorando totalmente as falhas dos engenheiros. Barco, barco, barco. Que fizessem o barco. Sim, estava perfeito o barco. Barco, barco, barco...

Os engenheiros chamaram construtores. Construtores que não entrariam no barco e que, portanto, fizeram tudo ainda pior do que aquilo que estava no projeto já mal feito. O material foi de segunda, o salário foi baixo, a humilhação foi constante, de modo que, propositalmente, os construtores fizeram um barco para afundar.

Terminada a construção, os engenheiros fizeram vista grossa. Nenhum se atreveu a descer até o porão. Não, eles não eram homens de andarem em porão. Se os construtores disseram que estava bom assim, então devia estar.

Os engenheiros avisaram a elas que o barco estava pronto. Receberam os ouros e os louros enquanto elas babavam pelos cantos, de olhos vidrados, cabelos insanos sem parar de repetir um minuto sequer... Barco, barco, barco,  barco, barco, barco, barco, barco...

Nas ruas pegaram a mais densa ralé até encher o convés. Eles é que deveriam servir, trabalhar, lavar, passar, coser, arrumar, cozinhar, fritar, ferver e fazer, logicamente, o barco navegar. Não interessava como. Trabalhariam em troca de pão. E só apanhariam um dia sim e outro não. Elas eram mesmo muito generosas. Barco, barco, barco.

No dia da partida, estouraram uma garrafa de champanhe sobre o casco. Elas também bebiam champanhe. E muito. Comemoravam a glória de todos os barcos. O mais perfeito e lindo e bem construído barco que o mundo jamais sonhou em ver. E era delas. E era graças a elas. Barco, barco, barco. Hahahahaahahahaha.

No segundo dia em alto mar, elas ainda bebiam e riam e gritavam “barco”, como lhes era típico. Foi então que um moço, ralé de toda ralé, subiu em plena proa. Uma ousadia. Um desrespeito. Uma falta total de educação. Que queria ele entre elas, na parte mais importante e magnífica do barco, barco, barco?

Queria avisar dos erros no barco. Ele vira a construção do porão e podia quase garantir que não era sólida. Que não aguentaria muito tempo, que se partiria à primeira provação. Precisavam fazer alguma coisa. Do contrário, afundariam todos.

Hahahahahahahaha. Barco, barco, barco. Então ele por acaso era uma delas? NÃO! Ele era um dos engenheiros? NÃO! Ele era um dos construtores? NÃO! Ele era ralé e ralé não sabe nada. Barco pra ele. Que voltasse para o porão, onde era seu lugar, e deixasse de lado esses sentimentozinhos de inveja. Ah, como era feio criticar porque ele não sabia fazer melhor. Ah, que ridículo ele dizer isso porque queria o lugar delas... Ah, então elas não entendiam de barco? Ora, como sim. Barco, barco, barco pra ele. Imbecil burro.

Continuaram no champanhe e nos gritos e nas danças.

Quando a água começou a invadir o porão aos gorgolejos, ele tentou mais uma vez avisá-las. “O barco vai afundar! Precisamos fazer alguma coisa! E já!” Blá, blá, blá, disseram elas. Barco, barco, barco. O barco é ideal, é perfeito, está funcionando perfeitamente. Então se houvesse problemas ele pensava que elas não saberiam? Elas saberiam. Era o barco delas. E não havia nada de errado com ele. Será que ele não podia pegar o que ele pensava e enviar no casco? Bem fundo no casco? Elas sabiam. Os engenheiros sabiam. O barco era perfeito. Barco, barco, barco. E mais champanhe.

Ele foi ameaçado. Que parasse de dizer besteiras. O barco era lindo e era delas e não afundaria jamais. Mudaram as regras. O suprimento de pão lhe foi cortado. A surra passou a ser diária. Que aprendesse a não falar o que não sabia. O que ele, ralé, entendia de barcos? Nada. Se mais uma vez ele viesse com suas ideais revolucionárias e irreais, ele aprenderia sua lição. Seria jogado ao mar, como isca para os tubarões que vivam fora do barco, barco, barco.

Ao fim do dia, dois terços do porão já estavam submersos. Ele pensou uma última vez em avisá-las. Em dizer-lhes qual era a situação no fundo do barco, ele que estava ali, que via a água entrando, que via os primeiros ratos se afogarem. Isso era tudo que ele podia fazer, avisá-las. Que salvassem todos. Por favor, que não os deixassem morrer... 

Mas pensou melhor então. Elas não queriam ser salvas. O barco ideal existia, em suas mentes. O barco real não interessava a ninguém mais.

Percebeu que não importava o que dissesse, ou quantas vezes o fizesse, elas afundariam o barco do mesmo jeito.

Ele tentara. Era isso o importante. Não esperaria nem mais um momento. Foi à popa, vestiu o seu colete salva-vidas e atirou-se ao mar desconhecido. O barco afundaria de qualquer modo. Que fizessem o que lhes interessava, então. 

Enquanto esteve à deriva, ouvia ainda claramente o espocar dos champanhes e a cantiga sorridente que não cessava, mesmo quando a água salgada já lhes entrava pela boca. Barco, barco, barco, barco, como é perfeito nosso barco, dizia a última delas, enquanto morria.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Felicidade


Felicidade não faz barulho. Felicidade não sai na rua, não dá abraço ou sorriso forçado e não abana para quem passa. Felicidade não quer aparecer. Felicidade não vai às festas e nem se deixa fotografar para o Facebook. Felicidade não ganha aumento, não sobe de cargo e não fila a simpatia alheia. Felicidade não humilha ninguém. Felicidade não usa anéis sem decoro, não quer sapato de couro e não é sempre a primeira a falar. 

Felicidade não quer sair no jornal.

Felicidade não mente, não fala em nome dos outros e não obriga sua presença a ninguém. Felicidade não faz complô, não troca olhares significativos e não quer ser mais importante do que qualquer um. Felicidade não se importa com os outros. Felicidade não quer ter poder. Felicidade não quer parecer.

Felicidade chega em casa depois de um dia de cão e sorri. Embevecida. Não importa o quanto a queiram, só ela decide a quem se dar. Não importa o quanto se importem, ela só quer um canto de lábio. Felicidade é aquilo que fica quando ninguém mais sabe, ninguém mais vê, ninguém mais se importa. Felicidade é promessa de ser feliz mais além. Felicidade é perceber como tudo é passageiro, como pouca coisa é realmente importante, como há quem lhe ama só por amar, não por mostrar. Felicidade, enfim, é ser. Ser de verdade. E saber, mesmo que ninguém mais saiba, que se é feliz.