sábado, 17 de novembro de 2012

A vizinha


A vizinha sabe de todas as coisas.

Seria até caso de estudo. Só não é porque ninguém no mundo é tão sabida quanto a vizinha. Logo, só a vizinha poderia estudar a vizinha. Mas isso ela não faz. É perigoso o que ela poderia descobrir... Além disso, a vida da vizinha é perfeita.

A vizinha conhece as doenças todas. Ela tem, em algum lugar, um diploma de medicina. Lá de Harvard. Em um olhar ela diagnostica, desengana e indica um tratamento milagroso. Mi-la-gro-so. Salva o corpo e alma do infeliz.

A vizinha sabe o que acontece com todo mundo. Ela tem alguma tecnologia que nem a Nasa inventou ainda. Ela sabe quem trai, quem rouba, quem se droga, quem trafica e quem dá o cu escondido. A vizinha sabe onde você está agora. O que está pensando. O que você acha que ninguém sabe, a vizinha sabe. 

A vizinha está informada das notícias todas. Ela tem contatos espalhados em todo o Brasil – e mundo afora também. Caiu um prédio no Japão? A vizinha sabe. Caiu a bolsa na Alemanha? A vizinha viu. Morreram cinco no Paquistão? A vizinha estava lá. Espirrou sangue nela, inclusive. Quer ver? A vizinha mostra.

A vizinha tem um GPS que, quando for descoberto pelos outros, será tratado como invenção extraterrestre. A vizinha sabe de onde você chegou às 3h da manhã. E mais, sabe para onde você vai às 3h da tarde. Mesmo que nem você saiba ainda. Ela já sabe e já avisou alguém.

Porque, afinal, todo conhecimento deve ser repartido...

E a vizinha reparte.

A vizinha estudou tudo sobre relacionamento familiar também... Como tratar bem o marido, como criar lindos filhos, como adular a mãe, a sogra, o periquito... Tudo isso a vizinha sabe e não se cansa de ensinar. Ela conhece quem bate na mulher, quem dorme com a filha, quem trai a esposa com a cunhada e até quem deu uns pegas na própria avó.

Não bastasse, a vizinha conhece Deus. Se ninguém mais O conhece, ela conhece. Tem linha direta com Ele. Ela sabe do que Ele gosta e o que não gosta, o que Ele permite ou não permite... Ela sabe como ninguém o que é pecado. E avisa. E julga. E condena. Misericórdia? Se Ele tem, a vizinha não. É coisa do capeta.

Economia, beleza, jardinagem, educação, tecnologia, saúde, astrologia, traições, tradições, psicologia, psiquiatria, espiritismo, macumba, simpatia, medicina, medicina veterinária, enfermagem, finanças, relações exteriores, terrorismo, cinema alemão pós-expressionista, taxidermia, história, aramaico, inglês, bicho de pé, chá pra diarreia, astronomia, pediatria, botânica, química orgânica – e inorgânica, paleontologia, música, mineração... de tudo ela sabe tudo.

Ela contradiz, com calma e fumo, cada um dos especialistas dessas áreas, sendo, inclusive, capaz de convencê-los prontamente de que nada sabem, se comparados a ela.

Este texto, como se percebe, é um elogio à vizinha.

Porque a última vida que ela conseguiu salvar foi a minha. Não de um risco de morte, mas de esquecimento eminente.

Sim, em seu laboratório subterrâneo, usando seus conhecimentos de neurociência e neuromedicina e neuropsicologia e neurobarometria, entre outros, ela fez uma descoberta importantíssima, inédita, salutar, digna do próximo Nobel de medicina.

Preparados?


E que, portanto, ou eu paro com essa mania de ler – e de escrever, logicamente – ou acabarei afetado - e louco - muito em breve.

Nada tem a ver com meu conhecimento, com as oportunidades que estão surgindo, com o livro que lancei, com meus poemas que estão ganhando o mundo... É tudo uma questão de saúde. Preocupada como só, tratou de convencer meus parentes todos de que NÃO ler é o único remédio...

Como eu, porém, sou viciado e sem cura... continuo lendo. Agora escondido. O que pouco efeito tem, afinal, a vizinha sempre sabe... E não demora para que ela me denuncie e me encaminhe para uma internação compulsória (basta ela assinar um papel... a vizinha tem poder!).

Se eu internado for, por favor, conto com vocês.

Levem-me bolos, tortas e bolachas.

Sempre com recheios de Rimbaud, Woolf, Wilde e Flaubert.

Que, como a vizinha sabe, são os nomes de 'ameixa', 'banana', 'morangos' e 'doce de leite' em inglês.

(Lógico que a vizinha sabe!)

Um beijo para ela, inclusive, que já deve estar lendo esse texto antes mesmo de eu o escrever.


"O quê? Ele está lendo de novo?
Mas tem gente que não quer
ser ajudada mesmo...."



terça-feira, 13 de novembro de 2012

Quereres


É que no fundo eu começo a me sentir um piá de merda.

E piora, piora muito quando eu tomo a consciência de que, aos 24 anos, eu tenho direito de ser um piá de merda. Mas é que assim não me querem. 

Não me querem embarcando em um ônibus e mandando o motorista parar só quando eu cansar de olhar trigo e céu. Não me querem na cidade grande, passando fome e dividindo aluguel. Não me querem ganhando gorjeta em um bar imundo enquanto sonho em conquistar o mundo com dez versos e duas canções. Não me querem bêbado na praça gritando “all you need is love” às duas horas de uma manhã.

Não me querem como um sonhador, como um menino de nuvens, como aqueles que fracassam acreditando na putaria da arte. Não me querem fazendo curtas independentes e escrevendo contos que ninguém lê. E que quem lê não entende. Não me querem nas sarjetas. Por quê? Não me querem colorido de ilusões, acreditando até envelhecer, até perceber que é, não deu. Até engavetar tudo, até trancar e ir viver como os outros. Não me querem. Em lugar algum me querem.

E há o que eu não me quero também. Não me quero contando sempre os mesmos passos de casa à sala de aula e às balas necessárias para morte inevitável. Não me quero envelhecido e fraco, de terno gasto e gravata, sendo respeitado por qualquer coisa que disse uma vez. Não me quero sem sonhos, sorrindo das coisas bobas da juventude enquanto pago a escola das crianças. Não me quero assistindo os filhos voltando, trazendo livrinhos, enquanto penso que eu também já os quis escrever.

Não me quero dizendo que fui bobo e que agora sim sou correto e professor e sério. Não me quero contando quantas turmas eu tive e quanto tempo falta para a digníssima aposentadoria. Não me quero pigarreando alto, suando quente e dizendo “modernismo, minha gente”.

O que me quero?

Quem disse que me quero?

Não. Alguém assuma. Eu já não me quero mais.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Questões do impossível

Descascar uma laranja. Esse era meu objetivo de vida quando eu era só uma criança. Aquele processo todo de girar a laranja, a faca, as mãos, o mundo.... me parecia nada menos do que impossível. Eu olhava admirado vendo aquela casca soltar-se e formar uma serpentina comprida e ininterrupta. Eu nunca seria capaz. Eu sabia.

Quando descasquei minha primeira laranja, parecia que eu nascera fazendo aquilo. Era um movimento automático, independente de mim, não exigia habilidade, esforço, esperteza, destreza. Exigia a laranja, a faca e as mãos. Só.

Muito tempo depois, na faculdade, eu definia que impossível seria saber algum dia as classes gramaticais todas, os tempos verbais, as classificações das orações coordenadas e subordinadas.... As professoras diziam tudo aquilo com uma naturalidade extraterrestre. Não me era concebível como um ser humano comum, eu, no caso, conseguiria saber tudo aquilo algum dia.

Hoje eu recito a classificação das palavras de um texto inteiro, sem nem respirar.

Isso tudo me fez pensar que o impossível é, às vezes, uma questão de tempo. O que hoje me parece inatingível amanhã poderá ser só natural.

Toda essa reflexão é para perguntar o seguinte: e agora, quando é que eu vou saber exatamente o que dizer? Quando eu vou resolver meus problemas de forma confiante e eficiente, sem parecer um retardado gaguejante? Quando eu vou saber a resposta certa para uma provocação, para um elogio, para uma delicadeza inesperada? Quando eu vou perder o sorriso sem graça? Quando eu vou deixar de lado o embaraço e a sensação de desamparo?

Algum dia também isso se consegue? Ou chegou a hora de eu descobrir que algumas coisas são mesmo impossíveis, não importando quanto tempo passe? Chegou a hora, Carlos, de aceitar que alguns nascerem mesmo para ser gauches na vida?

Se alguém souber, por favor, responda.