sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Forte


Você não pode se confessar fraco. Nunca. Você briga e argumenta e discute e consegue. Você fere e tenta não se deixar ferir. Você protege quem ama, protege a própria pele, protege quem até quem nem conhece. Você parte e toma partido, você defende suas causas e tenta não comprar prisioneiros. Você prende o choro. [Ou você chora quando ninguém vê?]. Você aguenta consequências, você mente que tudo vai ficar bem. Você escolhe, separa, perde e corta, não sem dor, até as pessoas de dentro de si.

Você batalha e luta e consegue e falha e tenta de novo. E então você se acostuma. Você se acostuma a ser forte. Você acha que sua armadura é a única opção. Não é. É prisão. Ou antes esconderijo. Dentro da armadura, debaixo do aço escovado, do ferro no fogo dobrado, da carne que sustenta seu corpo, está só uma criança. Você.

E é abraço. Às vezes é abraço o que você quer. É abraço o que você precisa. Mas você não sabe pedir. Você desaprendeu. Ou porque ouviu que abraço não se pede, ou porque pensa que pedir é fraqueza. E você precisa ser forte. Você é forte.

Você não precisa de nada. Muito menos de abraço.
Mesmo que sem ele você fique assim, aos pedaços.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A afronta da Baronesa


Convidaram, então, a Baronesa para a festa no curral. Um erro, obviamente, mas o que se poderia fazer se ela estava mesmo em visita ao primo Genésio? Seria má educação não fazer o convite. Fizeram, mas avisando que a festa era de gente simples. Ela que não... fosse estranhasse. A Baronesa, muito cortês, aceitou o convite e fez de tudo para adequar-se à simplicidade citada.

Entre os vestidos que tinha – quase todos vindos da Europa a mando do falecido Barão – a mulher escolheu o mais simples, com menos rendas, com menos cores, com menos elegância nos tecidos e com menos bordados nos arremates. As jóias tirou todas, colares, pulseiras, anéis, brincos... Só deixou as duas alianças. Não passou pó de arroz nem blush. O único luxo a que se dignou foi ao perfume de laranjeira. Mais por hábito do que por consciência, inclusive.

Chegou à festa transformada em sorrisos e cordialidade. Mal chegou e fez-se o burburinho. “Que luxo! Não tem vergonha essa daí! Aposto que veio só pra se exibi! Antes a gente não tivesse convidado ela. Se era pra vim fazer assim... Garanto que tá dando risada da nossa cara, da nossa ropa, das comida que a gente feiz. Broaca! Parece uma prostituta de tão pintada. Olha só! E as jóias, heim? Deve tê tirado pra ninguém robá. Ah, mas dexô as aliança. Olha lá. Isso é só pra mostrá que tem dinhero! Cadela. E viu o perfume? Nem puta ainda fedendo tanto assim”

O momento do jantar foi terrível também. Enquanto todos comiam com as mãos e sofregamente, a Baronesa juntava bocadinhos com as pontas dos dedos e os levava delicadamente à boca. É que não havia talheres à mesa e, para ela, seria descortês perguntar. Comia aos poucos e sem jeito, desconfortável pela falta de hábito.

“Olha só o jeito que come! Pensa que é uma pombinha. Que nada, tá é com nojo da nossa comida. Olha, pega cas pontinha dos dedo... Que vaca! Como ela não fosse cagá que nem nóis depois! Parece que tem medo de se sujá. Não sei porque que veio, se era pra fazê cara de nojo!”

O próprio primo Genésio não sabia onde enfiar a cara, tamanha vergonha. Era só olhar feio que recebia. Sorria a todos como que se desculpando pela ostentação da convidada.

Mas foi quando chegou o momento das danças é que a coisa terminou realmente mal. Um moço desavisado, encantado com a novidade, decidiu tirar a Baronesa para dançar. Como o tempo de luto já passara e como estava ali fazendo o possível para se entrosar e ser agradável, a Baronesa aceitou o convite assim dizendo:

— És muito galante, meu rapaz. Certamente eu ficaria honrada.

Tudo então embaralhou-se. Só se ouviu o grito de “filho meu não é galhante coisa nenhuma, sua vaca!” enquanto a mãe do jovem partiu aos tapas sobre a elegância simplificada da Baronesa. Foi o que precisou para que todos os outros fizessem o mesmo. A pobre Baronesa teve o cabelo despenteado aos safanões, a roupa rasgada palmo por palmo e a pele pintada de vermelho e roxo e sangue.

E era bem feito. Bem feito, pensava até o primo Genésio. Fizeram o favor de convidá-la e ela fizera aquela presepada toda, esbanjando luxo para humilhá-los, comendo com nojo para constrangê-los e agora, não satisfeita, ainda xingava o rapaz que só queria lhe tirar para a dança. Ah, não, merecia mesmo a coça.

Só para se cobrar, Genésio abriu caminho entre aquela gente toda. Queria dar à prima sua pancada também. Afinal, fora ele o mais humilhado.. Quando chegou até ela, porém, viu que já não era necessário: a Baronesa estava morta. Ainda assim bateu. Bateu com força, bateu com vontade. Bateu porque, afinal, não fora pouco o desaforo.





segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Poesia concreta III









Não quero

C         N       E        E
O       F       T

NEM S E R  P  E  N    T    I   N     A

quero rotina.










Dia dos professores


Engenheiro, veterinário, artista, psicólogo, jornalista... Tudo isso eu já quis ser. Professor não.

Professor eu não quis ser.

Minha boa vontade para com a escrita me fez enredar por caminhos que a utilizassem também. A princípio o jornalismo. Mas um estágio e a falta de vocação me fizeram mudar de ideia, ainda no primeiro ano de faculdade. Mas para onde ir? Letras parecia a opção mais afim da escrita. Sim, na época eu já pensava em escrever.

Apesar disso, a  perceptiva de emprego, salário, tipo de trabalho, etc... parecia influir em mim. Até que veio uma certa mariposa e me disse: “Esqueça todo o resto. Você deve estudar o que você ama, o que lhe dá paixão. Você não estuda por um emprego, por um salário... você estuda por você e para a vida. Então estude o que te dá prazer. Estude o que você mais ama. Você vai ver como todo resto é consequência.”

Estudar o que eu mais amava... Era o conselho mais simples que eu já recebera. No entanto, eu sabia que conselheiro vocacional nenhum teria a sabedoria de luz dessa mariposa. O que eu mais amava? Literatura. Fui então para a faculdade de Letras, sem medos.

Tudo transcorria como em sonho. Especialmente em algumas aulas fascinantes de Literatura e Língua Portuguesa. As letras eram apaixonantes. E de repente eu me vi fascinado também pela função de ensinar, de educar, de lidar com pessoas em formação, com sonhos. 

Eu me tornava, aos poucos, irremediavelmente professor. E, pior, daqueles idealistas, do tipo que eu admirava em filmes como “Mentes brilhantes”, “O sorriso de Mona Lisa” e “Escritores da Liberdade”.

No meu primeiro estágio – repleto de medo – fui para frente de uma turma de EJA. Eu tinha 20 anos. Alguns de meus alunos, mais de 60. E eles me chamavam de senhor... Foi uma experiência ímpar. Foi o que eu precisava para me convencer de que, enfim, eu nascera mesmo para aquilo.

Tivemos 4 estágios. E em alguns deles, confesso, as ideias foram melhores que as execuções. Ainda havia insegurança e pudor em mim. Porém, tudo se dissipou quando assumi as minhas primeiras turmas. 

Nada se compara ao prazer de ter sua própria turma. De saber que não é temporário. De saber que o objetivo não é ser avaliado, mas ensinar, fascinar para o saber, mudar concepções, ajudar a construir sonhos.

É.... eu não escolhi ser professor, ser professor é que me escolheu. E só me cabe, então,  tentar ficar à altura dessa profissão.

Sei que não acerto sempre. Torço, porém, para estar acertando mais do que errando... Se é que isso é possível.. Não sei. Ser professor é tão subjetivo quanto a minha literatura. E tão emocionante quanto, também. Sei que estou tecendo pequenas diferenças. E nada se compara à possibilidade de mudar a vida de alguém. Se a cada ano eu puder acender uma luz na penumbra de um aluno, um aluno que seja, eu tenho certeza de que a escolha foi bem feita. De que eu estou sendo, enfim, professor.

sábado, 13 de outubro de 2012

Diálogos imaginários

— O mundo está carente de delicadeza.
— Você também, Clarice?
— Não... Eu estou carente de mundo. Só queria que o mundo fosse menos... bruto quando chegasse a hora dele me atingir.

sábado, 6 de outubro de 2012

Inside

Feche. Feche rápido as portas, dê duas voltas nas chaves e tranque os trincos também. Ligeiro. Bem ligeiro bata as janelas de par em par, venezianas, vidraças e depois cerre as cortinas de renda. Feche tudo: as frestas, as frinchas, as fendas... Feche, ande, feche tudo. Que hoje não entre nem luz nem vento. Hoje a festa é por dentro.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Entre aspas

"Qual é o cachorro que não lambe a mão que o alimenta? Qual é o cachorro que não rosna para quem lhe chega perto da comida? Não se preocupe, meu filho, isso tudo vai passar. O que tu tens na mão é um gato. E gatos gostam ou não gostam. Gatos, se não ganham comida em um lugar, não imploram, procuram em outro. Gatos são independentes e confiam neles mesmos, na própria capacidade de se sustentarem. Tu tens na mão um gato e gatos não agradam ninguém. Cachorros abanam o rabo até para quem os chuta, porque dependem dos outros para sobreviver. Gatos, ao primeiro desagrado, pulam o muro e vão viver outra vida. O pátio é pequeno demais para eles. Por isso, meu filho, não esqueças jamais que é um gato isso que tu tens na mão."