sábado, 30 de junho de 2012

Dentro dos baús

Ághata, a louca, chora escondida em um dos baús da casa. E eu não sei em qual deles. São muitos. São muitas as mágoas e as dores que temos aqui para guardar.

Eu só ouço seus gemidos e seus soluços esgarçados. Eles são como ratos e me roerem os nervos enquanto guincham incessantes. "Ághata, por favor - eu peço - pare." E ela não para.

Abro alguns baús à beira da histeria. E nada neles há senão vestidos aos trapos, teias de aranha e poeira o suficiente para sufocar até dez homens. Desisto. Mesmo que gastasse meus outros 100 anos a abrir baús. Mesmo que procurasse em todos os cômodos e todas as portas. Mesmo que chamasse e gritasse e prometesse relevar, eu não a encontraria.

Deixo que ela continue a chorar e quando vejo já choro também.

É só então que ela vem. Desgrenhada, coberta de pó e teia e traça. Manchada de choro, unhas roídas e vestido rasgado. Ághata se escora na porta e então me diz todas as coisas que precisava dizer.

Diz do seu desespero. Diz da sua tristeza. Diz da sua solidão de fundo de baú. Diz da sua falta de sentido. Diz do seu esvaziamento. Diz da falta de mim.

E eu, o que posso dizer?

Ela não espera que eu lhe diga mesmo alguma coisa. Ela espera que eu a abrace forte. Que eu lhe limpe as teias, que eu lhe cirza o vestido, que eu lhe penteie os cabelos, lhe passe batom nos lábios e esmalte nas unhas. Que eu lhe prometa, enfim, todas as coisas e lhe diga, pelo menos uma vez, que a amo.

Eu sei que ela espera isso. Eu sei que isso a salvaria. E, por consequência, salvaria a mim também. Salvaria-me do mesmo desespero. Do mesmo destino. Da mesma sina exata. Porque tudo que ela disse sentir, também eu já senti. De tudo que ela disse experimentar também eu já me fartei.

Mas estamos sufocados demais - ambos - para mexermos os braços. Estamos sem ar demais para formar as palavras na boca. Estamos já distantes demais para ouvirmos coisas bonitas. Passamos do ponto em que poderíamos ainda ser salvos. Cruzamos para onde o resgate é impossível. E por gosto.

Que desespero há em não poder consolar quem deveria ser consolado. Que desolação é  não poder salvar quem poderia ser salvo. Que angústia imensa essa de não ter forças suficientes nem para mostrar-se fraco. Nem para isso, Deus. Nem para dizer baixinho: “Eu sei. Eu entendo... Eu sou assim também. Encontra teu sentido, por favor, em salvar a mim....”

Não digo nada. Não faço nada. Mantenho minha dureza de pedra.

Ághata para de falar. Nos olhamos bem nos olhos. E desviamos. Ághata entende que salvá-la seria também me salvar. E que, mais do que tudo, quero mesmo é me perder.

Quando ela se afasta, lentamente, voltando para o seu secreto baú, eu esvazio um dos outros, o maior deles. Entro nele e me ponho a chorar, como um rato também.

2 comentários:

  1. Ando me escondendo também, meu amigo Anjo Maldito,em muitos baús...
    E toda vez que penso que consegui sair de um deles pela pequena fresta de sol que se anuncia por entre buracos do baú eu saio e tento respirar, mas o ar que me é permitido é o do interior do baú.
    Seco.Escuro.Espesso e solitário.
    Tal qual minha alma.

    Parabéns novamente pelo lindo post,continuo fã declarada de suas linhas e entrelinhas..

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