quarta-feira, 30 de maio de 2012

Retratos

Minha vó e meu vô. Olhos claros no retrato da parede. Olhos que ainda veriam crescer dois filhos e um neto adotado. Olhos que veriam o passado voltar e invadir a casa. Olhos que veriam brindes e fogos e sonhos e desgraças e fotos...

Olhos claros pintados, quase vivos. Olhos que se eternizaram em uma juventude de soldado e de moça quase alemã.

Hoje os olhos de minha avó não abrem, apenas tremeluzem em uma cama de hospital, tal qual lâmpada que no instante seguinte pode queimar. Hoje os olhos do meu avô são líquidos. Ainda mais claros do que no retrato, eles quase transbordam das lágrimas mudas que ele tenta bem fracamente disfarçar.

E meus olhos, vendo tudo isso, desbotam. E carregam entre eles uma tristeza já sem tamanho. Que não caberia, sequer, em retrato.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Dos homens secos

Gota a gota
o homem se esgota
goste ou não goste
o que era mar vira grota.

sábado, 19 de maio de 2012

A sagração da orquídea

"Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante"
Antoine de Saint-Exupéry

De cor intensa, insana e rara. Assim era a orquídea que a jardineira por anos tentou criar. Até chegar àquela flor, houve um sem fim de amostras, enxertos, mudas cálidas e fracassos.

Quando, porém, o botão tão aguardado se abriu e revelou um esplendor sem tamanho, a jardineira teve certeza de que aquela flor valera cada esperança enterrada.

A felicidade foi tanta e a liberação de tensões tão imensa, que a pobre jardineira não soube o que primeiro fazer: se tirar logo uma nova muda, se chamar as revistas especializadas, se avisar ao clube de orquidófilos, se chamar a imprensa toda, se ligar para sua mãe e contar o feito de uma vida...

Entre tantas urgências, olhando para sua criação suprema, decidiu igualar-se a Deus. Descansaria, isso sim, como fizera Ele no sétimo dia.

Deitada sobre a esperança satisfeita, coberta das glórias vindouras e docemente embalada pelo peito a compassar de alegria, a jardineira caiu em um sono profundo. Sono que durou quase todo o inverno.

Enquanto isso, no jardim suspenso da estufa, a orquídea sentia a solidão de tudo aquilo que é criado, mas não é cultivado. Ela teve sede, mas ninguém lhe deu água. Ela viu, em desespero, aninharem-se nas suas folhas larvas e lagartas pequenas, e ninguém veio tirá-las. Ela acompanhou o sol forte do meio dia a esmaecer-lhe a cor, mas ninguém colocou-a na sombra...

Por fim, durante várias das últimas noites, entrou na estufa a geada. Filha do frio e da noite, com sua conversa úmida e seus elogios sem fim, convenceu a orquídea de que se deixasse lamber por ela. E assim se fez.

Havia no quarto a primeira luz da primavera quando, finalmente, a jardineira acordou. O peito ainda era quente do orgulho e da beleza que sua máxima orquídea lhe deu. Tratou então, depressa, de chamar os fotógrafos, os orquidófilos e os artistas todos que jamais, nem em sonho, criariam cores tão belas quanto aquelas da sua flor.

Aprontou-se toda, vestiu-se de festa e esperou por eles à porta, chá de verbena na mão. Chegaram muitos. Uns ansiosos, outros ciumentos, mas todos deslumbrados com a ideia de verem a mais bela de todas as orquídeas. Quando a excitação do ar já fazia tremelicar as janelas do apartamento, a jardineira levou-os até a estufa.

Flashes ansiosos espocaram na nitidez da tarde. A jardineira, orgulhosa que só, permanecia de costas para a estufa, braço estendido, como se apresentasse um grande espetáculo de teatro.

Caras feias e murmúrios. Até que alguém do jornal perguntou mais alto do que deveria: E a tal orquídea, cadê? Quando a jardineira virou-se, pronta para dar a resposta óbvia, deparou-se com o vaso de barro quase vazio, ornado apenas pelas poucas folhinhas secas de uma flor há muito morta.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O cara dos sonhos


Pelos sonhos, é assim que ele começa a chegar. Começa a se esgueirar pela cama dela à noite. Começa a ser um toque sutil, um abraço, um beijo, sempre na hora de acordar.

E depois Clarissa levanta, lava o rosto, toca delicadamente a boca e vai para a janela. Lá ela espera algo que não sabe bem o que é. É pelo sonho que ele altera a equalização dos seus nervos. É no sonho que ele borda, ponto a ponto, a solidão da menina.

E Clarissa nota, de repente, o corpo mudando inteiro. Sente mais frio. Quer dormir todas as tardes. Perde a vontade de viver no país dos despertos. Já não tem interesse por qualquer coisa que não tenha em si a palavra “amor”.

Clarissa não se entende. Volta aos remédios, volta às buscas por alguém, volta a perceber o quanto é só.

É pelos sonhos que ele vai seduzindo a menina. É no impalpável do desejo que ele molda aquele coração pequeno, ao seu gosto. E em todos os lugares ele não está. Em todas as festas ele não aparece. Em todas as esquinas, paradas de ônibus, sinaleiras e cruzamentos. Em todas as salas, cinemas, reuniões, lojas e supermercados. Nada dele.

É pelos sonhos que ele faz com que Clarissa se apaixone pela névoa de que é feito. É pelos sonhos que ele dá na menina a vontade de não viver se for sozinha assim.

E depois, só depois, ele aparece. Real. Carne, músculos, sangue e ossos. Toques quentes nas mãos frias. E então diz à Clarissa, com todas as letras, que não a quer.

domingo, 13 de maio de 2012

Minhas três mães

Minha primeira mãe não tem um nome para eu chamá-la. E, dizem, eu nunca deveria chamá-la de mãe. Dizem ainda que essa não me amou. Mentira. Me amou sim. Amou o bastante para ter feito com que eu vivesse, quando era tão mais fácil um chá, um comprimido ou uma agulha de tricô qualquer. Já vi fetos mortos assim, salpicadinhos de furos, boiando em uma solução de formol. Poderia ser eu.

Então ela me amou. Amou pouco, pode ser. Eu não a amo. E alguém pode amar o que não conhece? Não pode. Mas um instinto qualquer faz com que eu entristeça no dia do meu aniversário. Ela lembra de mim. Todo ano. Eu sinto nas fibras todas. E isso me entristece. Paciência. Com a vida há de se ter paciência.

Mesmo se pudesse eu não falaria com ela. Acho que não teríamos o que dizer. E cenas mudas, piegas e lacrimosas me parecem sempre inválidas. Eu, no entanto, chegaria perto o suficiente para, escondido, saber se são dela estes olhos, esta boca, este nariz e este cabelo que de novo já teima em enrolar.

Minha segunda mãe – a única verdadeira – tem o nome de Suely. É essa quem eu chamo de mãe e a essa é que eu amo. A mãe que sempre diz “quando o Vinícius veio...” Aquela que sabe que detesto maracujá, salgadinhos de bacon e pepinos caseiros. Aquela que nunca, em tempo algum, deixaria alguém chegar perto de mim com uma bala de banana.

A mesma que conhece minhas cores favoritas e suas épocas. Vermelhos e roxos. Aquela que, na minha infância, desmanchava suas sapatilhas de festa para eu brincar com as contas. Aquela que me comprava em cada viagem uma maravilha. Que me fazia as vontades e me escondia as verdades até eu ter tempo suficiente de entendê-las. Aquela que me acordava de madrugada para saber se eu havia conseguido dormir apesar de uma febre qualquer. Aquela em cuja bolsa sempre há uma bala doce... 

Minha terceira mãe atende pelo nome de Ághata. E dessa eu nem falo sem rancor. É, talvez, a mais parecida comigo. Dela foi que herdei essa loucura dos olhos sujos de mel. Ághata não tem função outra do que me fazer, decididamente, sofrer.

Ela conhece cada ponta áspera da minha carne e sabe onde precisa, exatamente, arranhar para fazer-me sangrar. E arranha. Ferina, cruel, selvagem e delicada. Só quando ninguém está por perto...

Ághata foi quem hospedou a morte na casa. É ela que leva para a maldita chá com torradas à meia luz. Enquanto isso, ela saboreia – lambendo os dedos velhos – as histórias de sangue e cemitério que a outra tem para contar.

Assim são. Minhas mães: as três Moiras. A primeira segurou o fuso e me teceu de vida. Deixando que depois disso as outras seguissem com o trabalho. A segunda puxou e enrolou o fio. Deu a ele firmeza, textura e cor. A última, de tesoura em punho, esgaça a fibra, faz nós e pequenos cortes, esperando, esperando, só esperando, a hora do eu-fio ceder. 

Hoje é para as três que escrevo, com a certeza de que nenhuma vai ler. É às três que homenageio, sem nenhuma saber. Porque amor de filho pode ser isso também: não revelar o quanto se ama quando o amor pode ser pesado demais para qualquer uma delas.


quarta-feira, 9 de maio de 2012

Lydia e a rosa


Na oitava série a poesia era muito próxima de mim.

Ela estava nas minhas agendas, no fim dos meus cadernos, nas folhas arrancadas, atrás das provas de matemática, nas paredes do meu quarto, na minha pele, no balanço que eu só visitava à noite, na calçada da minha casa, nos papéis amassados, nas cartas jamais enviadas, nos livros devorados e até no silêncio que eu fazia me cercar.

Na oitava série os poetas eram muito distantes de mim.

Eles estavam nas fotografias em branco e preto, nos nomes pomposos dos jornais de longe e na tela iluminada de uma televisão qualquer.

Nunca aqui.

E então chegou Lydia. Em um trabalho de escola. Na época eu aceitava a ilusão de que ela era mesmo daqui. E não desmentiam em nós a crença. Só mais velho eu soube que a “autora taperense” havia nascido em Guaporé. De qualquer forma, naquele tempo conheci suas obras consegui me encantar por elas.

Ao contrário de muitas cidades que louvam escritores medíocres pelo simples fato de serem locais – e de bancarem a publicação de ‘livros’ – todo reconhecimento de Lydia é merecido.

Suas metáforas são de uma beleza singela, sua linguagem é rica e seu ritmo se mantém delicadamente. Taperense ou não, o fato de Lydia Mombelli da Fonseca ter sido apresentada como “daqui” fez com que, de repente, poetas e poesias se encontrassem em mim.

Naquele instante brotou a certeza de que se a Lydia conseguia escrever desse nosso fundo de mundo, eu também conseguiria. Foi, talvez, pelo exemplo de Lydia que meus papéis ganharam asas. Que minhas palavras não ficaram escondidas no fundo das gavetas – como era o destino delas. Lydia por muito, muito tempo me serviu de inspiração. Não de temáticas, mas de vida.

Suas palavras tiveram tanto eco em mim que lembro ainda hoje de um soneto a respeito de uma rosa amarela. Nele a poetisa dizia que sua alma não poderia ser tomada de mais encanto do que se alguém, algum dia, depositasse em seu jazigo uma terna rosa amarela.

Eu lembro de ter arquitetado o plano todo. Primeiro eu trataria de descobrir onde ela estava enterrada, depois compraria a rosa e – por fim – lhe prestaria minha homenagem, indo ao nosso cemitério. No entanto, foi só falar com minha mãe para descobrir que Lydia não havia sido enterrada aqui.

Ficou sem minha rosa.

Hoje é seu centenário. E eu só queria lembrá-la por isso. Pela importância que ela teve em mim através de suas palavras.

Esse texto meu talvez não a alcance. Mas ele é feito com a intenção de ser tão singelo quanto a rosa amarela que aquele menino um dia quis levar ao túmulo dela.