quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Determinismos

Nos trabalhos de escola, meus coleguinhas sempre respondiam se eram descendentes de italianos ou alemães. Eu respondia que era adotado.

Em outros trabalhos, respondiam se a cor dos olhos, o formato dos lábios ou do nariz era igual ao do pai ou da mãe. Eu respondia que era adotado.

Em trabalhos mais avançados eles respondiam o resultado das combinações sanguíneas dos pais para compreender melhor a eritroblastose fetal. Eu respondia que era adotado.

Não, meus amores, sem traumas. Ser adotado é uma das minhas virtudes. Só introduzo assim para mostrar uma coisa que me inquieta: o determinismo. Nos casos acima, o genético.

Segundo a estética da Literatura Naturalista o homem é determinado pelos genes que herda dos pais ou pelo meio social em que vive. Ponto. Todas as deformações e crueldades de caráter são assim explicadas.

Cresci sem sequer supor qual a minha 'descendência'. Cresci sem imaginar de quem são esses traços que por aí carrego. Cresci sem ter a quem culpar, geneticamente, pelos meus defeitos todos. Logo, o determinismo dos genes é um idioma estranho - e curioso - para mim.

Prossigamos.

Meu modo de andar. Meu modo de falar. Meus traços. Quase tudo, enfim, são os modos do meu pai (adotivo). Entendem?! No próprio perfil digo que sou filho adotivo e tenho virtudes e defeitos adotados. Verdade! Não estou dizendo que assim se prova o determinismo do meio. Só que isso me espanta. Antes de qualquer hipótese, logo aviso: não, meu pai não 'pulou a cerca'. É ele quem não pode ter filhos. Como explicar as semelhanças então? Não sei. Também não é esse meu tópico.

Pois muito bem. Explanação geral feita, quero falar da minha personalidade. Do meu pai eu 'herdei' uma calma, uma paciência, uma submissão até, que são difíceis de se encontrar em alguém. Nada o abala muito seriamente. Foram pouquíssimas as vezes em que o vi alterado. Ele é de uma paz quase divinal. E eu também sou. Sou dócil, sou simpático e benevolente. Sou quase bobo. Isso, até a primeira vírgula.

Depois dela, sou todo a minha mãe. Ela com seus olhos faiscantes, suas expressões ferinas, seus modos ríspidos, sua espécie de 'fúria' abençoada é quem forma a maior parte de mim. À medida que meu pai releva, minha mãe estraçalha. Enquanto ele apazigua, ela causa o furor de incêndio.

Ao passo em que a personalidade dele me preserva, a dela é que me salva.

Porque a vida é cruel demais com os gauches. Sem garras nas mãos ninguém sobrevive muito. Não por dentro. Porque é preciso não se deixar ferir por dentro. É preciso expor a casca inteira sim, aguentar as pancadas, revidá-las, quebrar unhas e perder dentes na luta, mas não deixar que te machuquem no peito. Não permitir que te contaminem na alma. A falsidade pode nos estragar a manhã, mas nunca o amanhã. O cinismo pode nos perturbar por um momento, mas nunca por muito tempo. É preciso a coragem de revidar. É preciso a paz de poder bater. É preciso, acima de tudo, a força de resistir.

E isso eu tenho.
De sobra.
Obrigado mãe.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O meio da árvore


Passeio pela casa exausta que, às vezes, é minha. Transpasso meu corpo pelas cortinas, sinto nos dedos o toque plástico da madeira branca. Atravesso a porta da rua, ando pelos jardins, encontro pouso no balanço enferrujado de sonhos.

As cigarras zunem espalhando o verão. Os cachorros cavam a desenterrar seus ossos ancestrais. Um beija-flor estupra sua beija-flora. E eu tento - bem em vão - agarrar o sentido. Tento engarrafar nuvens, mãos que sentem só o toque do vento, olhos que se fixam e se demoram como os olhos dos mortos.

O que eu faço aqui?

O que sou eu entre a grama bem aparada e o céu de um azul cortante? Eu não encontro resposta sem quebrar. Então deixo, bem lentamente, de procurar. Não me interessa nem a pergunta. Nada me interessa mais. Nada me arrebata ou me eleva do chão. Talvez isso seja mesmo algum tipo esquisito de morte. Como se uma árvore morresse por dentro, ficando de pé apenas pela dura e velha casca. Esfarelado, enegrecido e podre o seu cerne velho.

Eu procuro pensar nos caminhos começados. Eu procuro pensar nas portas ainda não abertas. Eu procuro pensar nas metas, nos passos, nos objetivos sistêmicos. Não consigo. Sou árvore. Árvore podre e oca. Coisa que está plantada sem querer. Coisa que não tem a morte de cair. Coisa que não descansa nem no além.

E tudo me inferniza e tudo me corrói e tudo me transtorna. Nada me derruba de vez. E não cair, talvez, seja meu mal. Porque quem cai pode levantar. Pode reviver. Pode adubar o solo e permitir que brotem os cogumelos vermelhos. E quem não cai, Deus? O que faz quem não cai?

Vegeta? O que é morto nem vegeta. Então me dê, Deus, a queda de glória. A queda bendita. A queda que destroça, que espalha farpas, que faz barulho mesmo que ninguém escute. A queda que quebra toda a casca e liberta a putrefação do miolo. A queda da qual verte a água negra do que um dia já foi seiva verde.

Ou então, Deus, faça - se for de sua maligna vontade – surgirem-me brotos novos. Trata-me feito um Lázaro de lepra nos nervos. Ressuscita-me para espalhar tua glória e provar que me contrarias até à morte.

Só não me deixe, Deus, continuar assim. Porque já é morto tudo aquilo que não sente.
E já não tem vida o que não se faz sentido.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Nicinho

Sei. Eu sei que tu não suportas ser chamado assim. Contudo, começo dessa forma. Não como provocação, mas como forma de te contar que só quem te amar demais te chamará desse jeito. Então, não fique zangado, aceite...

Aceitar, aliás, é uma coisa que tu custarás bastante a aprender. E eu preciso, mesmo, que tu te esforces bem nessa lição. Assim, quando chegares na mesma janela em que estou eu a olhar para baixo, para os outros andares, poderás não ver tantas rachaduras nem tantas janelas quebradas.

Um dia tu vais aprender que aceitar os teus erros é o modo mais fácil de transformá-los em acertos. Se não de vida, ao menos de evolução. Tu não serias metade do que és sem teus erros, acredite em mim. Então dê espaço para eles também dormirem junto ao teu peito, feito inquilinos que não pagam o aluguel e fazem barulho demais, mas sempre te socorrem nos momentos de escuridão.

E por falar em momentos de escuridão, quando eles acontecerem, não te esqueças que há sempre um lugar para o qual fugir: o miolo dos livros. Bem cedo tu encontrarás o fascínio das letras e a maravilha de esconder-se entre as curvas delas. E isso vai te transformar a vida inteira, assim como nas mágicas que acontecem nas histórias que hoje tu mais gostas de ler: “Os dois bruxos” e “O pássaro de ouro”. (Prometa-me que cuidará dos dois livros pra mim, sim?!).

Escreva, Nicinho, escreva. Quanto antes começares tanto melhor. Aos oito anos, quando fizeres tua primeira poesia, descobrirás o mistério da arte. E se mais não conto é para não te estragar todo o fascínio que essa descoberta te causará.

Ah, menino, eu queria tanto te dizer para tomares cuidado com isso ou aquilo. Para não fazeres certas coisas e não evitares tantas outras... Mas meu medo é tremendo. Sim, ainda grande terás medo e não mais de que o mundo acabe quando tiveres só doze anos. (E a propósito, não, ele não acaba em 2000). Terás medo de que, mudando alguma coisa, um ínfimo passo, tu não estejas um dia a te escrever esta carta. Sim, Nicinho, porque daqui tu vais descobrir que valeu à pena. Daqui poderás ver o quão alto tu subiste e quantos andares ainda te esperam.

Então, por esse medo, termino. E não com uma recomendação, mas com um conselho: viva. Viva e aceite tudo que a vida quiser te oferecer: amores, decepções, vitórias, amizades, revoltas, tudo, enfim. Daqui eu descobri que o amargo dá tanto gosto à vida quanto o doce. E só o gosto da e pela vida é capaz de nos fazer subir mais um andar, degrau por degrau, resistindo sempre à tentação de pular a janela.

Com amor imenso,
Vinícius

PS: Pergunte a alguém sobre a frase no muro.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Sentido

Só três coisas dão a você
a sensação de que você existe:
o amor
a arte
e a morte.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Fecham-se as cortinas

ou

De como acordei - de repente - poeta em 7 de fevereiro de 2012

"Esse vínculo originário entre a consciência linguística e a mítico-religiosa expressa-se, sobretudo, no fato de que todas as formações verbais aparecem outrossim como entidades míticas, providas de determinados poderes míticos, e de que a Palavra se converte numa espécie de arquipotência, onde radica todo ser e todo acontecer."
Cassirer, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 2009.

"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada."
Clarice Lispector - entre um cigarro e outro - em entrevista a Junio Lerner em 1977.



Eu ali, sozinho, na plateia escura. Sorrindo quando era de sorrir. Aplaudindo quando era de aplaudir. Declamando quando havia silêncio ou coração o suficiente.

Os spots desligados.

Eu ali, rabiscando de estilete nas poltronas, nas paredes, nos carpetes. Letras e palavras entalhadas no escuro plebeu. Cortinas encalhadas no palco não meu. E tudo seguindo e as rodas girando e os tolos do palco aplaudindo os próprios tolos do palco.

Bravíssimo! Sempre bravíssimo!

E minhas palavras ganhando a força dos vermes que rastejam no escuro - sem olhos. E minhas letras tortas embrutecendo e procurando vida. Qualquer vida.

Acendam os spots!

Canhão de luz na plateia.
E de repente eu, ali sozinho, ganhando aplausos dos tolos do palco. Como se, finalmente, eu tivesse feito alguma coisa. Qualquer coisa. Como uma poesia - finalmente - publicada entre os jornais diversos que no outro dia embrulhariam o peixe o pão e o vinho.

E de repente virei poeta. E de repente me fiz escritor. E de repente fui digno deles.

Não é crítica. Pelos deuses da antiga glória, não é crítica. Mas eu só me fiz escritor quando as palavras devoraram o papel jornal? Quando elas chegaram até lá? O poema, dois anos antes, não era bom, porque as letras dele só voavam aqui, rasantes? E agora? Agora é bom porque tem a propriedade de absorver a urina dos cães?

Não me sinto maior ou melhor do que me sentia antes. Então por que me tratam assim? São curiosos os tolos do palco. Os que agora se orgulham de mim. E antes não? São estranhos os tempos em que matam-se os talentos e aplaudem-se até os pequenos brotos de fama.

Porque eu não conheço outra vida senão a do escrever. Em papéis de cartas, cartões amassados, guardanapos usados e cadernetas de compras. E eles? Eles nem sabiam que escrevendo eu existia.

Que triste o espetáculo...

Fecham-se as cortinas.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O terrorista de rosas nas mãos

No cinzeiro de jade, junto às cinzas do último cigarro dele, cada pedacinho das unhas roídas e vermelhas dela. O quarto todo ainda respirava almíscar e na janela as nuvens vinham espiar tímidas o que não aconteceu.

Ele veio de longe, desafiando o vento e o tempo voraz. Veio só porque ela chamou. Veio porque já não podia sozinho com o que sentia no peito. Precisava, feito terrorista, explodir o coração perto dela, ferindo-a com farpas e os rastilhos de pólvora.

Depois de ter-lhe dito “venha cá”, ela esperou. Esperou com a impaciência do desespero. Como se ele trouxesse no peito escarlate qualquer veneno capaz de curar-lhe as ânsias de morte. Esperou pintando as unhas e os planos de sequer deixá-lo falar. Tão logo ele entrasse, cobriria sua boca com um beijo e o derreteria ali, em plena cama, desarmando bombas e sorvendo calma toda cura de dentro dele.

Enquanto subia as escadas, cada degrau uma tacada nos nervos, ele também desenhava dentro de si o que aconteceria naquele quarto. Assim que ela atendesse, ele explodiria em traços tão vermelhos quanto as rosas que carregava nas mãos. Atiraria, pois, as flores ao chão e a tomaria em seus braços romântico, ultrapassado e carnívoro.

Quando abriu a porta, ela não soube como fazer. Agradeceu as flores. E ele não soube o que dizer ou onde tocar. Derrubou o chapéu. No mesmo momento captaram o erro. A ousadia imaginada, feito fada dos contos, recolheu-se à imaginação, medrosa do real que é.

Ela ofereceu um café, ele aceitou um cigarro e o relógio parou para ver com seus altos ponteiros o que acontecia. Era engraçado. O relógio ria. Os dois atravessaram mundos e se jogaram maldições só para se encontrarem ali. E agora nenhum deles sabia como começar.

Sim, porque imaginavam – sempre a imaginação – imaginavam que depois do primeiro toque, todo o resto aconteceria naturalmente. Esperavam, tensos, como se espera alguém puxar o pino da granada que tem presa à própria mão.

Quando ela levantou trocar a música, ele ensaiou um gesto tímido. A mão levantou das pernas feito borboleta manca e bem quase pousou nos cabelos dela. Não pousou. Quando ele foi à janela ver se já anoitecia, ela tentou soltar um dos botões da blusa, quebrou a unha.

Quando o ar cansou de ser respirado e a tensão já quase sufocava aqueles dois, ele levantou dizendo que era melhor ir. Que ainda precisava ver uma tia adoentada e comprar-lhe um elixir. Os dois sabiam que era mentira. Uma pena, ela disse. Quase desejando empurrá-lo pelas escadas, matar quem testemunhou o assassinato da ousadia. E do amor. E do amor?

Porque se nenhum jamais agarrasse o outro firme, não passariam daquilo. Daquela encenação de atores sem falas. Daquela falta de graça. Daquele desaproveitamento de pele. Daquele desperdício de hormônios e fluidos e carnes.

Não. Ela precisava fazer alguma coisa!

Deu-lhe a mão. Que voltasse, outra vez, outro dia. Quando a porta se fechou, cada um desejou morrer à sua medida. O chão faltava. As paredes tremelicavam de riso. Lá fora os carros gargalhavam rápidos enquanto ele descia a rua, chapéu na mão.

Só houve tempo para que ela roesse a unha quebrada. Para que descesse correndo a escada. Para que gritasse o nome dele, antes que ele chegar na esquina. E o nome dele, assim gritado, desvirado no ar, batendo ecos nas casas foi como a palavra mágica que faltava.

Como se tivessem dito os infinitos nomes do diabo e perturbado o mundo a ponto da ousadia não saber onde se refugiar. E escolher a humana realidade. Ele, por sério que era, correu, sorriso no rosto, chapéu descendo a ladeira. Ela, por míope que era, tirou ligeira os óculos para que não se machucassem.

E explodiram!

Silenciosamente explodiram os dois. Em um arrepio de bocas e línguas cuja fumaça cheirava à jasmim e alecrim. Em um rodopio de fogos vermelhos e morangos maduros que espocavam antes de chegarem ao céu. Explodiram. E o único som que se ouviu foi o da primeira gota de chuva.

Sim, naquela noite haveria tempestade. E naquela noite haveria também, até que enfim, amor.