segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Felicidades, culpas e responsabilidades

É porque no fundo a única responsabilidade que você tem é com a sua própria vida. E eu abro mão desse fardo com relativa facilidade. E também com relativa facilidade assumo a carga que é alheia. É trauma, eu explico.

Hoje uma menina faz aniversário. E eu não sei como ela está, ou onde. Eu dei a ela um parabéns constrangido, recolhido, envergonhado, via uma rede social qualquer. E eu disse a ela que esperava que ela estivesse feliz. Do fundo do meu peito, eu esperava – mas isso não disse.

É bem patético. Ou comum até, mas eu me sinto responsável por ela. Ainda hoje. Tudo por um ato – ou a falta de um ato – meu. Estávamos ainda no primeiro grau quando a vida dela mudou. Por minha causa.

Não completamente, eu sei. Agora eu sei que tudo não se resume à minha ação, mas a conjunto de consequências. Por muitos, muitos anos, porém, eu acreditei que devia a ela cada felicidade que pudesse ter-lhe tirado com aquilo que fiz.

De manhã não tivemos aula naquele dia. Intersérie. De tarde ela estava escalada para um dos jogos, no time de vôlei. Éramos, é importante dizer, os párias da turma. Ela, outra menina, e eu. Ela por ser pobre foi discriminada desde pequena. A outra menina por ser frágil e ingênua. Eu por opção.

É estranho dizer isso, mas de cedo eu vi que não podia fazer parte da alienada maioria que chamava uma de piolhenta e a outra de burra. Eu troquei as festas a que era convidado pela solidão nos livros, as brincadeiras na hora do recreio pelo esconderijo da biblioteca, as tardes de encontros pelas tardes de risadas com aquelas duas.

Eu passei em algum ponto, conscientemente, para o lado dos que ninguém queria. E não me importava com isso. Como se desde pequeno eu entendesse que eu me bastava. Que pela vida afora eu precisaria desfazer laços e ficar do outro lado do risco.

Era meio-dia quando voltamos, a outra amiga e eu, para casa com a promessa de que sim, à tarde iríamos até o ginásio, mesmo livres da obrigação, para fazermos companhia a ela.

Não fomos.

E porque não fomos, eu não posso contar o que lhe aconteceu. A menos que eu traduza as consequências. A menos que eu diga que naquela tarde as outras meninas, todas bonitinhas e fabulosamente nascidas, a impeliram a ficar com um menino.

Foi a primeira vez. E ela só se deixou levar porque não estávamos lá.

O primeiro beijo. E por que ele seria um desastre assim? Pelas consequências. Se estivéssemos lá, eu e a outra amiga, teríamos dado risadas a tarde toda. Teríamos comido alguma bobagem, bebido uma coca-cola e depois iríamos para casa, com a vida toda normal.

Chegaria sim o dia do primeiro beijo. Quando ela estivesse toda pronta. Quando ela decidisse que era a hora. Quando aparecesse um menino com quem valeira à pena. Não assim. Não empurrada pelo gozo das outras meninas. Não com alguém cujo nome ela nem sabia. Não para fazer parte delas.

Mas foi. E isso eu não podia mudar. E no dia seguinte a culpa já caia em mim. Ela era diferente. Ela provou do mel / fel daquelas meninas. E queria mais.

Não era conosco que sentava. Era com elas, que aceitavam como se fosse uma iniciada nas tramas mais baixas da casta. Não a viam como igual. Jamais a veriam. Mas agora podiam divertir-se com ela. E o fizeram.

Foi ali que ela mudou. Não era mais a aluna brilhante e tímida. Era vulgar. Ficava com quem aparecesse, sempre tutelada pelas risadas de incentivo e nojo e escárnio das meninas bonitinhas.

Até que elas se cansaram. E a deixaram como se deixa um animalzinho que já não diverte mais. E já não havia mais volta possível. Ela olhava para nós com um misto de saudade e condenação. Eu olhava para ela com uma culpa imensa. E a culpa forma abismos. Abismos que nenhum de nós jamais ousou passar.

Ela encontrou abrigo no que se costumam chamar de “más companhias”. Beijos na boca, sexo talvez, drogas possivelmente. E tudo por aquela tarde. Aquela tarde em que eu preferi ficar pintando coisas dignas dos elogios da professora de Artes. E que a outra amiga preferiu ficar vendo sessão da tarde no sofá de casa. E tudo mudou. E tudo aconteceu e se modificou.

E hoje, que é aniversário dela, eu voltei a me perguntar até que ponto eu a fiz infeliz. Porque é infelicidade o que reverbera naqueles olhos da foto. Olhos velhos, de olheiras fundas e cílios pretos. Infelicidade nos cabelos retos e na boca dura que não dá sinais de saber sorrir.

Se pudesse falar com ela, perguntaria se ela me culpa por tudo. Se foi tudo tão ruim assim a partir dali. Ou se ela encontrou um jeito melhor do que o nosso de se fazer feliz. Eu queria saber se ela me agradece ou condena por aquele dia. Ou melhor, se ela sequer tem noção do que representou aquele dia, do que mudou, do que aconteceu a partir dali.

Agora eu posso dizer que assumi demais a responsabilidade por ela. Que ela fez o que precisava e o que queria fazer. Que é um erro tentar poupar os outros deles mesmos. Que não se deve proteger alguém daquilo que esse alguém quer. Eu posso me repetir isso que aprendi. Posso. Posso dizer até ficar rouco e cansado. Mas não sei se posso me convencer. Porque em algum ponto eu sou o menino que não foi. E ela, a menina que ficou, imensamente sozinha naquele ginásio tão grande.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Princess of Wands

Quando você vem é pra me dizer que está na hora. Hora de levantar dessa cama, hora de tirar o pó dos armários, hora de abrir essa janela direito e deixar entrar o sol da manhã. Quando você vem eu sei que vai jogar fora todos os meus papéis e planos velhos. Sei que vai me fazer beber mais água, cortar os cabelos e querer mais do futuro.

Quando você vem eu sei que é pra me desacomodar, pra me fazer parar de reclamar e sair dessa cadeira para lutar por alguma coisa decente. Eu sei. Sei que vai ser para me dizer que postura assumir, quantas frutas comer e onde investir meu dinheiro e energia.

Quando você vem é pra tirar das gavetas o que eu não preciso mais e pra me cercar dos sonhos que eu deveria mesmo ter. Quando você vem é pra me colocar em frente ao espelho e me moldar do jeito que eu deveria mesmo ser. Para me fazer ver minhas reais capacidades, tirar minhas máscaras e desmontar meus esconderijos.

É, quando você vem eu não tenho mais paz nem sossego.

Nem medo.

Porque é só quando você vem que eu posso viver.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Epifanias

Quando a poeira vermelha baixou, no meio da rua estava Clarissa. Vestida de flores, olhos pintados de água, sorriu-me triste. Os cabelos quase brancos faiscavam com o sol da tarde e meia. Do lado, nas pedras quentes do chão, uma bolsa de viagem, alça arrebentada, couro desgastado.

Voltou.

Quando falou, não me deixou interromper. Não me deixou falar também. Quando falou, eu sabia que não mais me deixaria.

“Eu sei. Eu fui tola. Tola demais. Todo esse tempo sempre perseguindo sonhos. Sempre imaginando que eu seria a solução de alguém, sempre pensando ‘Se ele me amasse, eu poderia mudar a vida dele’. E eu nunca percebi. Eu jamais nem imaginei que tudo que eu precisava era de alguém disposto a mudar a minha vida. Alguém disposto a me fazer feliz. Entende? Alguém que me mostrasse o meu lugar. Que dissesse o quanto eu era importante. Alguém que me notasse, me admirasse, me fizesse sorrir por bobagens, sabe? E agora eu estou aqui, chorando, porque todas as vezes que tentei fazer alguém feliz, eu abdiquei da minha felicidade. Do que eu sentia. Do que eu queria. Eu fiz com que eles vissem o quanto eram importantes. E eles se tornaram importantes pra eles mesmos. Não pra mim. E isso me fez ver que importante não é mesmo amar. É ser amada, né?! Por isso eu voltei. Voltei porque não posso mais perseguir sonhos, não posso mais quebrar. Estou esfarelada, entende? Não em cacos, em farelos. E eu queria saber se há um lugar, se há um canto, se ainda há encanto que me faça voltar pra você. Porque o segredo é mesmo esse. Não é tentar mudar a vida de alguém. É deixar que alguém mude a sua. E eu sei que você poderia mudar a minha se quisesse. Se tentasse com força. E eu deixaria dessa vez. Dessa vez eu sentaria e seria feliz. Bem boba, bem tola, bem mocinha de filme da década de 20.”

Quando ela finalmente terminou eu compreendi. Cada palavra. E soube que ela tinha razão. E soube que eu precisava, também, de alguém que me fizesse feliz, não de alguém a quem alegrar. Eu disse que ela podia sim voltar. Mas nunca pra mim.

Conto inspirado pelo som de A hora da estrela

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Caríssimo

Arrumando hoje as coisas das gavetas, encontrei um papel com o nome teu. Vinicius Linné. O nome limpo, um papel rasgado. Lembrei-me de ti. De todos os meus personagens – e foram muitos – tu és o único que não matei. A tua história é a única, aliás, à qual nem fim dei.

Que te esqueci é bem verdade, mas haverás de me perdoar. Eu me afastei porque precisava, já começava a te pintar com tintas tristes. Eu te fazia chorar à toa e machucar-te assim me magoava. Dei-nos um tempo.

Que foi de tua vida enquanto não te escrevi? Viveste? Não? Eu não sei. Não sei o que fazem meus personagens longe de minhas tintas e minhas máquinas. Se continuaste triste por esses tempos, perdão. Hoje voltou-me toda uma vontade de te retomar, de te fazer sentir, vibrar, viver. Ou te fazer dançar e cair, comigo no fim.

Há dias – e noites principalmente – em que penso em tirar-te dos meus papéis, do molde negro das minhas letras. Assim, como se eu acaso fosse uma versão moderna de Dr. Victor Frankenstein. Com a diferença de que você não é monstro porque eu te fiz anjo. Agora queria fazer-te carne, músculos e sangue. Queria fazer-te homem. Qualquer dia queria ver teus olhos tristes feito pingos de mel, os teus cabelos escuros feito anoitecer, tua barba de tirar a inocência do rosto.

Queria ver isso em qualquer canto da rua. Mas não há magia que traria à vida o que eu inventei. O que só por isso existe. E só dentro de mim. Assim como não posso fazer me brotarem os sentimentos do peito. Como não posso traçar o amor, o ódio. A tristeza mesmo que me é tão íntima, eu não posso moldar em argila crua e depois soprar-lhe vida. Mesmo a ti que teci com dedos de panos tão delicados eu não posso fazer viver. Eu nem pude te impedir de sofrer, quando era isso que desejavas tão ardentemente.

Ah, Vinícius. Somos no fundo tão iguais. E acho que é em minha carne que te fazes carne. É do meu peito que te faço o teu pulsar. Não sei, menino, quando foi que te inventei. Imagino que era outono. Imagino que entardecia. Imagino que as nuvens armavam uma tempestade azul. Imagino que naquele dia eu amava e por isso imaginava você.

Queria te ouvir. Queria te tocar. Queria te fazer escrever. Será que algum dia me perdoarias a tua criação? Será que algum dia faria sentido eu te criar feito máscara minha. Será que eu te convenceria de que tu não existes? Não sei de mais nada. Sei que escrevi porque a tarde existia. Porque a solidão existia e porque existia papel e caneta nas minhas mãos. Sei que escrevi só porque precisava que tu vivesses também. Para não ser tão sozinha. Para não ser esquecida. Para purgar e para não morrer.


E agora que tudo é assim, tão fatal, tão ficcional e tão real aqui dentro, queria te dizer que um dia ainda te escrevo uma história linda. A primeira de toda minha vida. Prometo.

Com amor,
Clarissa

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Contrastes

Foi Ághata quem me instruiu na construção dos universos paralelos. Foi dela também que apreendi o dom de cimentar a felicidade neles. Por toda minha vida vi Ághata descortinar possibilidades fantásticas. E mais, colocar sua felicidade sempre nessas possibilidades. Depois, ensinaram-me também que um corpo – mesmo abstrato? – não pode ocupar dois lugares no espaço ao mesmo tempo. Compreendem? Colocando sua felicidade na dimensão do impossível, Ághata tratava de continuar infeliz.

Ela me dizia assim: “Se eu tivesse continuado com minha loja de chapéus em Londres e minhas idas a Gales para comprar musselinas e berloques eu hoje seria feliz”. É mentira. Com seus gastos excessivos e seu gosto desmedido, ela acabaria falida e depressiva.

Em outras épocas, falava: “Feliz eu só seria se tivesse me casado com o dono da bombonière, aquele que me deu de noivado um anel de três rubis. Com ele eu teria dois filhos para me acompanharem na velhice”. Compreendem como ela se seduz com felicidades impossíveis só para permanecer infeliz? O tal dono de bombonière mesmo revelou-se estéril fora das fantasias de Ághata.

Às vezes em uma casa menor. Às vezes em uma outra família. Às vezes de volta à Inglaterra. Ághata sempre escondeu a felicidade onde ela não estava. Onde não conseguiria encontrar, nem que tentasse. E eu, como bom tutorado, aprendi com ela. Feliz não é aqui. Feliz é lá. Feliz é além. Feliz é sempre uma meta que muda de lugar, afastando-se eternamente.

A felicidade para nós de sensibilidades – ou loucuras – afloradas é sempre uma condição que reside no que não somos, no que não temos. Somos infelizes por contraste, como se gostássemos do conceito da infelicidade mais do que gostamos de admitir.

Sim, do conceito especialmente. Ao contrário do que pode parecer a maior parte do tempo, eu não sou daquelas pessoas que vivem de lamúrias. Eu transbordo em risos para quem chega perto o suficiente. Eu tenho alegrias, o que tem diferenças sutis em relação à felicidade.

Com Ághata tudo é mais denso, mais definitivo, mais trágico. Agora mesmo eu posso observá-la. Soprando prazerosamente a fumaça de um cigarro e junto com ela a felicidade que só teria – disse-me – se parasse de fumar.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O Apelo da selva

{Vicente Gallego - Trad. Albino M.}

Sempre foi a tristeza
um dócil animal de companhia
com quem brinquei algumas tardes.
Esticava-me o braço sem apertar os dentes,
passeava comigo, sentava-se a meus pés
nos frios invernos.
Nos dias aziagos, a experimentar-lhe a obediência,
atirava-lhe a alma e ela trazia-ma
docemente empapada em seu bafo doméstico.
Sempre foi a tristeza
um dócil animal de companhia
que apanhou há algum tempo
este feio costume de morder o dono.


Via: Rua das Pretas

Acúmulo

o7h33min e eu já estou cansado desse dia. E de todo resto, pra falar a verdade. Cansado de falar sem ser escutado. Cansado de não falar e tentar demonstrar com cada poro o que eu estou sentindo - e não ser notado. Cansado de arcar com responsabilidades dos outros tendo tantas que são minhas. Cansado de fazer concessões e jamais vê-las feitas para mim. Cansado da falta de empatia de quem está ao meu redor.

Cansado de ficar sozinho se equilibrando ora aqui ora ali. Cansado dessa sensação de vazio e de falta de perspectiva. Cansado de ter planos frustrados. Cansado de não jogar tudo longe, de não mandar as coisas às favas.

Cansado de não fugir.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Pasárgada

É recorrente essa sensação. Tudo aqui me sufoca, por isso essa pressão no peito e nas pálpebras. Escrevo como se organizasse letras debaixo d’água. E vivo sem ar. Metaforicamente falando. Seria minha cidade rarefeita? Ou rarefeita é minha alma?

Não sei. Sei que ouvi o chamado de outras luzes. De uma cidade com pôr do sol nos montes. Uma cidade com mirante, construções históricas, águas no ar e uma rua que termina em penhasco. Lá as árvores crescem mais do que aqui e os vizinhos têm a delicadeza de não saberem meu nome.

É aos poucos que eu vou conseguindo aparar raízes, cortar amarras, desfazer laços. É com paciência – demais – que vou me desprendendo por completo, fio por fio. Enquanto isso os chamados soam. Mais fortes, mais definitivos, mais completos a cada dia em que minha voz não é escutada por ti.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O jogo

Como se entrassem pela minha porta e me entregassem as peças e o tabuleiro de vidro. E me explicassem então todas as regras. Como se eu compreendesse o objetivo do jogo e decidisse arriscá-lo. Como se eu fosse movendo, peça por peça, para criar o preciso desenlace. Como se eu já houvesse traçado todos os movimentos das próximas todas jogadas. Como se em mais alguns lances eu fosse vencer.

Como se voltassem pela minha porta e me dissessem para parar com tudo. Como se me contassem que as regras todas que agora valem são novas. Como se me deixassem com o mesmo tabuleiro, as mesmas peças, a mesma posição, tudo congelado no espaço e dissessem: “Quando recomeçar o objetivo do jogo é outro: o Rei não vale mais nada, é a peça de menor valor. Já a Torre deve ser protegida a qualquer custo, inclusive a custo do Rei”.

Como se as novas regras eu não entendesse direito. Como se não me houvessem explicado qual o lugar dos meus movimentos anteriores. Como se não me houvessem dito qual era o novo caminho. Quando meus objetivos, quando meus sonhos, quando o próximo passo? Não haveria próximo passo? Como se todo meu tabuleiro – antes vencedor – estivesse agora em posição ruim. Mal orientado, deselegante, pronto para perder em dois ou três lances.

Como se de repente eu tivesse que me reinventar, caso quisesse continuar tendo sentido. Como se antes, nas regras claras, meu sentido fosse explicado por si só. E agora eu precisasse, desesperadamente, encontrar um novo. Como se eu precisasse retraçar metas, objetivos, planos. Como se eu precisasse rever o valor de todas as peças. O Peão, o Bispo. O Cavalo. A Rainha.

Como se eu precisasse fazer da minha quase vitória um novo jogo, no qual a desvantagem já seria o ponto de partida. Como se eu decidisse fazer. E como se a partir daquele momento tudo mudasse.

E mudou.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Despedida Padrão

Crianças, eu volto. Não mexam no fogo e menos ainda na gaveta das facas. Não liguem o gás, cuidado com as tomadas e alimentem o gato. Não quero saber de vocês mexendo no armário dos remédios. Durmam cedo e nada de música alta também. Qualquer coisa chamem a vizinha. Ela já está avisada. Ah, e nada de mexer no fogo. Eu já disse. Criança que mexe com fogo faz xixi na cama. Deixem a porta sempre trancada. Ouviram bem? Sempre trancada. Jamais abram para estranhos - eles têm o poder de mudar nossas vidas. E nós não queremos isso, queremos?

No mais, acho que era isso. Acho que peguei tudo. Venham cá para um beijo. Se cuidem bem que logo eu estarei de volta. Ah, e até lá se comportem, heim?!

Eu às vezes amo todos vocês.
Adeus.

Reconectar

Desplugar da pele os fios. Arrancar - delicadamente - o mouse das mãos. Remover com segurança as teclas dos dedos. Desligar a tela dos olhos. Abaixar o som do eterno zunido. Desconectar, enfim. É hora de deixar tudo para trás, fazer as malas e esquecer que a cidade existe. Vou para o interior. Mais para o interior, se é que isso é possível. Vou para dentro de dentro de dentro de dentro do estado - e de mim.

Perigosíssima viagem. Não aquela dos ônibus climatizados, mas aquela dos meus cômodos escuros. Aqui há sempre a fuga possível da internet com seus caminhos e suas horas que escorrem não passam. Lá vou estar comigo, esse homem que teimo em não querer conhecer.

Para chegar lá me despeço de tudo. Ou quase. Mas o computador com sua conexão nem é o mais fundamental. Sequer é importante o celular que nem sinal tem lá. Descubro na hora das malas que o mais difícil de abandonar são os livros. Há alguns de leitura quase pronta. E a tentação de esconder um deles na mala é muita. Mas não é férias? Se é, preciso tirar férias de quem sou aqui. E isso inclui a leitura.

Preciso ler as coisas que ainda não li dentro de mim. E para isso preciso me livrar das palavras. Pelo menos das outras palavras.

As minhas eu carrego, invariavelmente. Resultado disso são as únicas coisas que levarei como fundamentais. Dois elos dos quais não me desfaço: minha agenda de escrever textos e minha câmera de tirar fotos. Nem tudo fica. Eu preciso voltar e encher os olhos com o mundo de lá. Eu preciso me entender melhor pelas fotos que escolho tirar e pelas folhas que teimo em escrever. É a única forma. A contemplação pura não me preenche assim.

Então é isso. São as malas para arrumar, as coisas todas para encaminhar e depois a alegria de poder respirar. De ver sol, rio, montanha, rebanho de nuvem, casa incrustada no mato e aranhas do tamanho de laranjas maduras.

É hora de se renovar, de se reinventar. Aonde tudo mais é calma, inspiração e sossego, é hora de reconectar. Comigo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Relicário

Tudo em mim já nasce velho, já vem filtrado por uma película de celofane amarelo e coberto pela poeira do que é ancestral. Tudo se curva sem o estremecimento da novidade. É tudo déjà vu de tom blasé. Em mim o vintage já não é estilo, é normalidade. Minhas fotos envelhecem a ganham vincos tão logo eu as tire. Meus poemas amarelam antes mesmo de eu os terminar de escrever na folha. Penso algo e no instante seguinte eu me ultrapasso.

Os livros que termino de ler viram antigas memórias. Vou ao cinema e sempre me parece que acabei de ver um clássico. Compro coisas novas e no instante seguinte, ainda de etiqueta, elas já são herança antiga.

A TV que assisto é sempre em preto e branco e qualquer “Muito prazer” já tem imiscuído o meu insosso “Adeus”. As novidades que me apresentam, eu já as vi na geração passada. Imberbe sou quase menino, em uma semana a barba me cresce – com fiapos brancos – e tenho quase 54. Meus 18 anos pertencem a qualquer vida passada, só consultada com a ajuda de médiuns muito bons. Minha infância foi pré-jurássica e agora mesmo, dada a hora do dia, minha manhã foi há 2 anos.

O primeiro dia de trabalho tem sempre cara de aposentadoria. E a ideia que me nasce fresca, já cheira a podre, porque de tanto pensá-la já lhe surrupiei a realização. Da música que me encanta, a letra já foi esquecida. Da pintura fresca, a tinta já descasca. Meus amores de tão atemporais já viraram eternos e as amizades não mais que lembranças.

Até eu mesmo já sou só relíquia santa, pedaço da cruz de Cristo vendido às quantidades.

É minha velhice crônica que me rouba o sentido. Por isso a busca sem parar. Por isso o desânimo já de berço. O recém-dito não é mais do que o já dito. O recém-visto é só o já visto. Meu segundo passado já é desbotado. Esse texto aqui mesmo, já me enche como se eu o escrevesse desde 1996. E fotografia que aqui boto foi encontrada no fundo de velhos baús que sobreviveram a duas guerras, três calamidades e um assassinato.

Tudo já me nasce prenhe de cansaço e se não há no mundo o quê descobrir, então para quê? É essa minha falta de sentido. O movimento rápido com que eu apreendo as cosias só faz com que elas fiquem gastas. E é a novidade que encanta e enfeita a vida. É a leveza das descobertas que torna mais bonitas as coisas todas. Que dá a vontade de continuar descobrindo, continuar navegando. Mas que faço eu que conheço do céu o gosto e do mar o vento? Que suspiro a poeira e me esfrego o mofo do corpo? O que eu digo se todas minhas frases já estão sujas e usadas?

Não sei. Não sei e meu não saber já é a moda francesa do século XVI.