quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A mulher destecelã

"Eu tive que desfazer depressa, descosturar tudo antes que você chegasse.

Eu desfiei as noites em que você me abraçaria e me aqueceria, enrolando seus sonhos nos meus cabelos. Noites embaixo de árvores, folhas secas no chão, carinhos lentos, risos baixos, vida completa.

Eu desbordei uma tapeçaria de segredos. A cumplicidade que teria com você, as nossas mãos se tocando como que ao acaso. Eu precisei desmanchar meus carinhos no seu rosto, antes que você os visse.

Eu, depressa, descosi os sorrisos que daria, os bilhetes que enfiaria nos seus cadernos, os telefonemas que daria escondida. Eu precisei desmanchar, pétala por pétala, qualquer margarida roubada que eu pudesse lhe dar.

Bem rápido eu puxei os fios, cortei com tesoura, rasguei com os dentes, antes que você pudesse chegar e ver tudo que eu já havia tecido para nós. Fios rompidos no chão, enovelados, enosados, sobras coloridas do que não poderá mais ser.

Deu tempo. Quando você chegar verá destroços meus no chão. Não verá nossas noites, nossos carinhos, nossas mãos dadas à esmo. Verá só a confusão de fios e panos. Talvez pergunte o que é. Talvez nem se importe. E eu não vou dizer nada. Não vou me importar também.

Mas ao sair, ao sair ainda vou olhar para a lã vermelha, toda arrebentada, e vou saber. Só eu vou saber. Aquilo ali já foi o meu coração. E eu havia bordado para dar a você.

Mas você não quis."
___________
Texto caído de uma das poeirentas cartas de Clarissa.
Imagem roubada de um rasgo num quadro de Frida.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Erro


Bússola apontando para o noroeste. Uva fora da estação. Xis vermelho na prova de matemática. Caminho que leva para rua sem saída. Caminhão na mão contrária. Mapa desenhado torto. Escola escrita com “i”. Buenos Aires como capital do Brasil. Número a mais no jogo do bicho. Baralho com 30 cartas. Desenho com o fogo de azul. Filhote de pato em ninhada de cisne. Quadro pregado torto. Farinha fora da validade. Fotografia com cabeça cortada. Disco de vinil com faixa arranhada. Página de ponta-cabeça. Vidro quebrado. Falta de troco no mercado. Mala enviada pro destino errado. Engano de telefonema à meia-noite. Quebra-cabeça sem uma peça...

Chega!

Até as coisas, imagino, cansam de estar sempre erradas. Talvez eu também tenha cansado de você vendo só os meus defeitos, apontando cada um deles, cobrando acertos que eu não posso ainda alcançar. Amor não interessa. Interessa a falta do teu filho. E para isso eu sou o homem errado. O número de carinhos não importa, só a quantidade de beijos de língua. Interessa o somatório dos teus colegas casados, interessa argolas de ouro nas mãos alheias, interessa a casa própria, o carro. Interessa a vida já estabilizada. Eu sou a resposta errada de mais essa equação. Pronto. Está bom assim? Está bom comigo dizendo que é assim que você me deixa? Como o número sempre negativo. Como a vírgula fora do lugar. Como aquela bússola apontando para noroeste. Um erro banal e grosseiro. Inteiro um erro.

E assim eu sigo na tua vida, contigo sempre me lembrando que estou sentado no assento errado. Pior do que isso, que estou ocupando o lugar de alguém que mereceria mais. Alguém que poderia ser mais do que eu posso. Tu sempre me dizendo que o meu lugar não é esse. Sempre ressaltando que estou atrasado. Sempre falando que paguei o valor errado. Sempre alertando que minha condução não é essa. Sempre.

Que merda. Só uma vez eu queria me sentir a pessoa certa.

Mas você não deixa.

Nunca.

Às vezes uma folha azul

Resíduo
(Carlos Drummond de Andrade)

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Poesia (mais do que) Concreta I

 Sois destinatário ou sois remetente?


(Livros de Georges Picard e Carlos Nejar)

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

(Desnecessários) Esclarecimentos à cidade escura

Em 2009 uma professora de Inglês do Instituto Imaculada precisou se ausentar das salas de aula. Depois de alguma procura, contrataram a Lidi – minha irmã fictícia – para assumir as turmas do Ensino Médio. As do Fundamental foram assumidas por outra professora substitua, exceto as duas oitavas.

Assim, havia ainda duas turmas descobertas e uma diretora levemente em desespero para encontrar alguém que as assumisse. Por indicação da minha fabulosa maninha, entraram em contato comigo. Dei aulas lá de abril a julho, quando assumiu uma professora designada pelo estado.

O Instituto Imaculada foi o mesmo em que eu estudei do jardim ao terceiro ano do Ensino Médio. Fui recebido pela direção e supervisão – professores da minha época – com um entusiasmo sincero, afinal – mesmo com algumas controvérsias – eu fora um aluno bonzinho.

Até aqui tudo certo. É nesse ponto que a coisa começa a ficar a cara de nossa querida cidade, a Cratera. Vou acrescentar uma frasezinha que talvez possa esclarecer o ponto que quero atingir: minha tia (e madrinha) é a Secretária Municipal de Educação.

Não demorou nada para que chegassem a mim comentários do tipo: “ele só está dando aula no Imaculada porque a tia arrumou boca pra ele”. Como uma Secretária Municipal poderia interferir numa Escola Estadual, eu não sei, mas a imaginação medonha dessa cidade sabe.

Não foram poucos os comentários nesse sentido, o que me decepciona de pronto. Eu já disse, quando forem citar minha cidade, futuramente, sempre digam que vivi em Tangamandápio, não em Cratera, vulgo Tapera.

Essa gente daqui me cansa, imensamente. Para eles não existem palavras básicas como esforço, merecimento, empenho, talento, estudo... Na visão de cabresto dos burros aqui atolados apenas existe oportunismo, indicação, favorecimento...

Por que tudo isso agora? Porque saiu hoje o resultado do concurso, esse sim municipal, no qual fiquei em primeiro lugar e devo assumir como professor ainda esse ano.

Não preciso de nenhum talento extraordinário para saber que dessa vez a coisa vai ficar ainda mais pesada. Agora a fofoca vai ganhar asas imensas e voejar à solta nas bocas podres e de línguas ávidas.

Isso me decepciona. Muito. Talvez eu pudesse dizer que durante todo o processo eu tive medo que o contrário acontecesse, que houvesse algum tipo absurdo de manipulação a fim de não me garantir a vaga. Mas não preciso, e nem quero, falar sobre isso.

Eu fiz a prova como todos os outros fizeram, ninguém me soprou as respostas ou facilitou o conteúdo. Eu apresentei meus parcos títulos como todos os outros concorrentes. E, ainda assim, vou ser taxado como aquele que só conseguiu porque a tia é Secretária de Educação.

Desculpem, mas não utilizem suas réguas para tirar minhas medidas. Não vou começar a falar das pessoas absurdas que ocupam cargos aqui por favorecimento, caso existam. Atacar não é meu objetivo.

Nem me defender é o objetivo. O que eu for escrever aqui não importa. Não importaria nem mesmo se eu mandasse publicar na primeira página do jornal local. Cérebros petrificados em mentes fechadas não entendem nem as coisas simples, quanto mais as complexas.

Minha sorte é ser bem conhecido por alguns. Quem me conhece, quem sabe um pouco de mim, do que eu penso, do que eu faço, do que eu sei, tem a certeza de que a minha classificação só pode ser chamada de competência.

Quando aos demais – a massificante maioria - que eles continuem com os cabrestinhos de burro. Que continuem com as cabecinhas de alfinete. Que continuem com as lingüinhas nervosas. Que continuem com essa inveja esbugalhada. Que continuem com os cochichos e mexericos. Porque o verbo de ordem deles é esse: continuar.

O meu, desculpem, mas é evoluir.

Independente do que falem, eu sei o porquê de eu ter sido classificado. E pretendo honrar meus motivos.

Obrigado realmente, a quem me fez conseguir essa vaga. E não, não foi minha titia. Quem fez isso foram os professores excelentes que tive, os colegas que me fizeram crescer, os amigos que me fizeram persistir, meus pais que puderam me apoiar, e principalmente minha namorada, sem a qual eu nem estaria aqui. Amo, de coração, a força e o exemplo que extraí de cada um de vocês.

O resto é resto. 
E todo resto é lixo.

Obrigado pela atenção.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Post Confuso

Nada melhor para começar com o pé direito inverso o ano novo do que o velho. Post Confuso. Se você não sabe o que é, tampouco vou explicar, hoje não. Leia que você entenderá, ou não. Se você ficar também confuso, tanto melhor. Há dias adio as coisas, tudo dentro da normalidade, então. Pode alguém sem emprego tirar férias? Lados negativos de ser freela. Não trabalho, não recebo, não gasto. Vivo monástico. Quase. Ando lendo, só. E hoje terminei a trilogia que me prendia há uma semana. Agora estou vazio, cheio de livros vazados também. Eu deveria, nesse momento, estar escrevendo dois artigos e o projeto de Dissertação do meu mestradinho (inho de carinhoso, fique claro). Nada feito. Estou – como sempre sempre sempre – deixando para a última hora. Desespero me inspira, acho. E para quem passou os últimos anos oscilando entre a ócio e o desemprego, esse ano me promete jornada dupla. Paciência. Rendo mais fazendo renda, mesmo. Chega de bordado. Cássia Eller é fantástica. “O professor me ensinou, fazer uma carta de amor”. Ah, o escritor da música também, seja quem for. Alguém notou que as imagens todas daqui seguem o mesmo ton sur ton? Preciso mudar esse template, mas quando vejo esse cinza todo acho tão simpático e adio. Odeio esperar. Odeio desesperar por cada moto que passa. Correio ingrato esse meu. Que imagem ilustraria o post confuso? Sem ilustração? Andei fotografando outro dia. Posto uma foto dessas. Tem a ver. Alguém sabe identificar que fruta é? Olhando assim? Eu acho confuso. Confuso, sacou? Hoje estou tããão piadístico. Pausa. Comerciais. Coisas caindo na casa velha. Contos trancados e a inspiração enjaulada no porão imundo. Eu quase sei sorrir. Quer ver? Então venha aqui.