quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sedução

Eu me dedico, então, essa noite, 
esse blues, esse vinho branco 
e essa solidão sem
 tristeza alguma.

Essa noite.
De lua.
De vento.
Vento devagar.
Bom vento.

Faço laço dos meus braços e assim me abraço lento.

Esse blues.
Blues blue.
Blues bom.
Blues de divagar.

Fecho os olhos com suavidade e assim trato de me conquistar.

Esse vinho.
De uva branca.
De gosto suave.
Doce de embriagar

Derramo na minha boca a fim de me inebriar.

Essa solidão.
Solidão escolhida.
Solidão desejada.
Solidão sem pejo.

Nela sinto a mim, nela me dou meu beijo.

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Ao som de: Duke Ellington and John Coltrane

Tesouro I

A sineta toca e todos correm cansados, cabelos colados num misto de suor, poeira e a água das mãos mal-lavadas. A fila se forma em algazarra de gritos e empurros. Meninos de um lado, meninas de outro.

Quando a professora entra no saguão quase todos se calam, olhos em gula. Ela traz debaixo do braço uma caixa enfeitada. Papel colorido e laço de presente. Vozes de “É pra mim? Não, é pra mim!” tomam os meninos. Ninguém tem coragem, mas todos anseiam perguntar: “Para quem é, professora?”

Seguem mudos pelos corredores, crianças expectantes, olhos fixos no que conseguem fisgar da caixa. É grande, como uma de sapatos. Será de caramelos? Será daquelas bonequinhas e daqueles carrinhos de balão surpresa? Será de bom-bons? Será de mamutes malteses?

Entram na sala. Os olhos secam na falta de piscar. A professora calma, porque sabe o segredo, pega no giz e escreve, logo abaixo da data e da frase de do dia: “O Tesouro”. E a coisa toda começa.

Então é você, olhando cada um ir até lá, receber a caixa enfeitada, abrir uma fresta e espiar lá no fundo...

Então é você, vendo eles sorrirem uns aos outros com cumplicidade medonha, por saberem também o segredo da caixa. É você a ver todos se perfilando lá, na frente das classes, dizendo o nome do próximo a quem dão O Tesouro.

Então é você esperando que a Patrícia, ao menos a Patrícia, a penúltima, indique você, mas ela não indica ninguém. Então você é o que sobra.

Então lentamente é você, sentado na última classe da última fila, fingindo não ter notado que ninguém escolheu te dar O Tesouro.

Então é você que a professora chama, sorrindo com brilho de mortal compaixão. É ela quem diz “Vinícius, o tesouro por fim é seu. Só seu”.

Então é você andando com 27 pares de olhos filmando cada passo em vacilo. É você pegando a caixa nas mãos e fazendo da boca o que é para ser o arremedo de um sorriso torto.

Então é você o último a abrir, o último a espiar, o último a saber o segredo do tesouro.

E então, no fundo, o tesouro é você refletido de dentro da caixa, no espelho colado.

Agora, quando todo mundo já sabe e já viu, a professora manda voltarem aos lugares e explica toda em tons de magistério : “O Tesouro de cada um, é cada um”.

É isso? É só isso?

Então é você que, por ter sido o último, volta para casa com a caixa de espelho nas costas, carregando na mochila o que parece ser apenas ouro de tolo.


terça-feira, 24 de agosto de 2010

Das coisas que chamam amor

Como se por decorrência da morte lhe aflorasse qualquer traço amorístico lacônico, pegou com dificuldade o celular e, mesmo estirado no cimento da rua, sangrando, apertou o 8 e o yes.
— Oi.
— Oi. Só liguei pra dizer ainda mais uma vez que te amo.
— O que aconteceu com você?
— Estou morrendo.
— O quê? Como? Onde?
Numa golfada de sangue que atinge o asfalto ele ainda balbucia algum lugar.
— Mas o que você está fazendo próximo à praça da Sé? Com quem é que você está aí? Olha, se você está me traindo, seu desgraçado, eu juro que mato você. Eu mato, ouviu? Porque você pensa que é muito especial, né? E único e poderoso, né? Está se sentindo. Acha que eu não consigo coisa melhor? Pois eu consigo, só pra te mostrar. E não adianta agora me ligar, seu desgraçado, pra vir dizer que me ama e sei-lá-mais-o-quê, ouviu? Eu não me interesso por nada disso, entendeu? Quero é saber o nome dela. Da puta, da desgraçada, da piranha com quem você está se encontrando por aí. Diz, anda, diz, desgraçado. Régis? Régis, fala alguma coisa, seu puto. Desgraçado, infeliz. Bem que elas me avisaram, bem que elas me disseram que homem é sempre igual, que não presta mesmo. Ô raça infeliz. Seu Idiota. Você está me ouvindo? Eu estou falando com você, seu babaca...
E ela poderia só ter dito que o amava também, era o que ele esperava ter ouvido antes de morrer. Agora é tarde. Tarde, tarde, tarde, tarde.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Felicidade


O que eu mais custo a aceitar é a felicidade. Sua irmã, a infelicidade, eu acomodo com ligeiro torpor no peito, tão logo ela chega. Eu me apego à ela com uma facilidade doce e sem perguntas. Logo o abraço é completo e apertado, sufocante até.

Quando a felicidade chega, porém, eu abro só uma fresta da porta, com desconfiança imensa.
— De onde você vem? E veio por quê? E quem foi que te mandou? E quanto tempo pretende ficar?

A felicidade, geralmente pequena, mas significativa, treme suas penas todas ali na entrada. Ela responde entrecortada e já meio vacilante que se a hora não for boa, ela vem em outra, mais propícia.

A contragosto deixo a felicidade entrar, mas fico sempre à espreita, mantendo sua pequenez no canto do olho. Eu sondo seus motivos, eu suponho seus porquês, até que ela toda suma no ar.

É porque eu ainda não entendi que também a felicidade vem sem cobranças. É porque, no fundo, estou acostumado a pagar um preço pelo que é bom. E uma felicidade, assim, sem acerto prévio de contas, me causa estranheza de morte. É porque eu preciso aprender a aceitar mais. E é também porque eu preciso entender que quando a felicidade vem, sem motivos, basta deixá-la pousar no peito e não perguntar jamais os porquês.

Mesmo que ela arrulhe demais, mesmo que ela me arranhe demais, mesmo que ela seja misteriosa demais. Por Deus, é só uma felicidade, deixo que essa fique, então.

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Agradecimentos a Michael Kirste pela fotografia da minha felicidade.

sábado, 14 de agosto de 2010

Volver

À Srta. P.
Volto. Volto para passar a mão nas letras da parede. Volto para o abandono de lar, para a ruína erguida, para os tijolos sem casca.

Volto para o capim alto crescendo na cozinha. Para as janelas levemente despencadas e estendidas e entediadas e enfadonhas. Volto para ver os sapos no sofá. As salamandras de olhos muito caviarescos escorrendo lânguidas nas cortinas.

Eu volto sem pensar, sem entender. Eu volto para amar cada pingo de poeira que balança blasé no ar. Eu volto procurando mais pingos, mais pontos, mais vírgulas. Mas vírgulas não há.

Ainda assim eu volto. E no caminho de volta eu imagino encontrar na mesa de três pernas um buquê de rosas novas. Num halo de luz solar.

Buquê não há. Se houvesse...

Entenda. Eu volto, sempre.

Por que você não?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Nu em pranto

Chove.
Já viste meu corpo nu na chuva?
Dele todo sai vapor de água.
Esfumaço feito o diabo.
Sou quente?
Não.
Porque por dentro há muito frio.
Gelo seco.
Molhado, porque chove
os olhos pesam.
A água escorre e lava
o sal de algum choro escondido.
Eu recolho meus choros pra mim
e me dou de beber.

Agora chove.
Gota por gota na minha pele.
O frio arde.
O vapor queima.
Deito nu num chão de pedras coloridas.
Fecho os olhos, como se adiantasse
- é escuro -
também por dentro.

Da chuva cada pingo me faz carinho.
Mas só depois de cair agudo, flechado.
Mordidas e beijos e sopros.
Sozinho.
Na chuva.
Só porque chove.
E pela chuva eu sou amado.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Olho mágico




Todo dia ele acaricia tua porta. Ele não bate nela. Não pede para entrar. Não toca a campainha. Ele passa a mão, bem de leve, como se na madeira sentisse teu rosto, teu corpo, tua alma. Todo dia ele para na porta. Como se entrar fosse proibido, parto de todo castigo, todo pecado, todo crime. Todo dia.

Todo dia ele espera te encontrar, por acaso. Todo dia ele pensa em te abraçar bem forte, sem dizer nada, sem pedir perdão, mas também sem perdoar. Ele queria, só um dia, ser maior do que o próprio orgulho. Ele queria voltar pra tua casa, pros teus olhos, pra tua boca. Ele queria morar – amar – do outro lado da porta.

Todo dia ele vem, e depois desce as escadas, sozinho. Todo dia. Enquanto você espia. Pelo olho mágico.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

True Colors





You with the sad eyes
Don't be discouraged
Oh I realize
It's hard to take courage
In a world full of people
You can lose sight of it all
And the darkness inside you
Can make you feel so small
Você, com seus olhos tristes,
não fique desanimado
oh, eu imagino
que é difícil criar coragem
num mundo cheio de gente
você pode perder a visão de tudo,
e a escuridão dentro de você
pode fazê-lo se sentir tão pequeno


Às vezes é uma música que nos domina pelo som. Alguma coisa no ritmo, alguma coisa na voz, alguma coisa no peito. Então você para um instante e ouve com calma, compreende a letra, sente o som. E aí você sabe, de alguma forma, que aquela é uma música sua. Olhos tristes, de alguma forma, sempre são os meus. A escuridão de que fala a letra, é a mesma que mora dentro de mim. É nessa sombra que sou pequeno e menino e sozinho. São escuros meus olhos, tristes.



But I see your true colors
Shining through
I see your true colors
And that's why I love you
So don't be afraid to let them show
Your true colors
True colors are beautiful,
Like a rainbow
Mas eu posso ver suas cores verdadeiras
brilhando sem parar
Vejo suas cores verdadeiras
e é por isso que eu te amo
então, não tenha medo de deixá-las aparecer
as suas cores verdadeiras
as cores verdadeiras são bonitas
como um arco-íris


De perto ninguém pode me ver. Só você. Só você. Só você pode ver minhas cores verdadeiras. Só você pode saber quantos tons de mel formam meus olhos castanhos. Só você pode saber que tenho nos cabelos fios pretos, marrons, dourados, acobreados, brancos. Ninguém mais pode chegar perto o suficiente. Perto o suficiente para ver minhas fraquezas, minhas bondades, meus meio-tons, minhas cicatrizes nas mãos. Só você entende, até isso. Uma vez você me disse que eu sou um idiota. Que eu mostro meu pior aos outros. Que eu tenho medo de ser bom e, por isso, ser considerado fraco, pior. Só você entende que eu sou um idiota. Só você ama um idiota.



Show me a smile then,
Don't be unhappy, can't remember
When I last saw you laughing
If this world makes you crazy
And you've taken all you can bear
You call me up
Because you know I'll be there
Então, dê um sorriso pra mim
não fique triste, não me lembro
quando foi a última vez que eu te vi sorrindo
Se este mundo te deixar louco
e você já não agüentar mais,
ligue pra mim
porque você sabe que estarei ao seu lado


Ser triste é meu modo de ser. Você entende? "Um homem com uma dor." Às vezes eu esqueço de tanta coisa. Eu esqueço, mas tenho você. Eu tenho você para me ver a cores, porque eu só me enxergo em  preto e branco. Preto e branco sempre. Eu preciso que você me diga quais cores eu tenho. Se você disser o que ama em mim, talvez eu possa notar. Talvez eu possa sentir o mesmo que você.



And I see your true colors
Shining through
I see your true colors
And that's why I love you
So don't be afraid to let them show
Your true colors
True colors are beautiful,
Like a rainbow
eu posso ver suas cores verdadeiras
brilhando sem parar
Vejo suas cores verdadeiras
e é por isso que eu te amo
então, não tenha medo de deixá-las aparecer
as suas cores verdadeiras
as cores verdadeiras são bonitas
como um arco-íris


Você diz que pode ver as cores em mim. Por que eu não posso? Você diz que pode ver cores em mim. Me ensine, então, a vê-las.

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Para ler ao som de True Colors by Alessandra Maestrini

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Faxina

Um dia você acorda e não entende como cabe tanto dentro. Do armário ou da vida – depende do grau de abstração do dia em questão. E aí você decide se livrar de. Coisas ou pessoas? Eu, particularmente, prefiro me livrar de pessoas. Das coisas tenho uma dificuldade imensa em me desfazer. Não queira pensar com isso que sou materialista, antes o oposto. Mas as coisas me lembram as pessoas de quem me “afastei”. É possível me compreender? Em Marte talvez.

Pelas pessoas tenho menos apego. Coisa de berço, quem sabe. Desde que minha mãe me passou adiante, eu entendi que as pessoas passam. E é sem dor de lágrimas que faço minhas despedidas. Não que não sinta. Sinto, mas mesmo sentindo, me resigno. É sempre a hora, pois.

Não tenho, então, medo depois de dizer que aquela pessoa já nem me desperta nada. Porque não desperta. Faz parte de fase morta. Minha vida funciona em compartimentos, mas isso é segredo meu. Quando uma comporta se fecha, ela se fecha sem frestas ou rachaduras. Sem risco de inundações ou vazamentos.

Das coisas eu não me livro. Do meu lixo velho. Das peças avulsas de quebra-cabeças mortos. Das rodas soltas de carrinhos velhos. Dos lápis em toco que escreveram meu/teu nome.

Eu sou mesmo engraçado (louco?). Por isso cumprimento tão pouca gente na rua. Por isso caem tantas coisas cada vez que eu abro uma gaveta, uma porta. Por isso é que eu poderia ser tão triste. Mas é que eu não sou. Não sou.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Era um homem com seu amante

Eu ouvi a voz dele primeiro entre sonhos, mas droga, já era quase meio-dia. Ainda deitado eu conseguia imaginá-lo na varanda de casa. Cabelos amarelos e compridos, boné, camiseta e bermuda. Engraçado, é inverno, estou debaixo de um edredom e dois cobertores e não consigo imaginar ele de calças compridas. Acho que nunca o vi assim. Na minha imagem ele acaricia a cabeça da minha cachorra, desajeitando o lacinho de petit poá.

Meu pai, ainda na porta, aceita a prancheta e escreve seu nome – por extenso – no local assinalado com um “x”. O moço loiro confere a assinatura, lhe entrega o pacote, sobe na moto e parte. Eu agora imagino minha mãe saindo da cozinha, pedindo o que há no pacote. Meu pai dizendo que é meu. Ela sugerindo que abram. Não abrem.

No quarto eu já me vestia, por saber o que há no pacote. Mas toda ansiedade foi domada. Vi o pacote azul sobre a mesa de jantar e passei reto por ele. Criei coisas para fazer. Almocei. Liguei o computador, li e-mails. Voltei à sala e levei o pacote para o quarto. Mais um segundo e minha mãe se encarregaria de abri-lo. Ali ele ficou, sobre a cama. Como explicar? Eu espero há mais de oito meses por esse pacote. Desde que uma professora minha, muito querida, me mostrou um e-mail.

Talvez eu queira reviver um conto de Clarice. Felicidade Clandestina. O que há no meu pacote, afinal, é um livro.

“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só pra depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.”

Por fim eu rompo com dentes e unhas o plástico azul: ele surge, compacto, capa dura, à espessura de um tijolo de construção. Ainda pelo plástico transparente eu vejo uma fita negra que o reparte. Meu livro tem marcador de página em cetim. Bem brincava eu “minha Bíblia”, “meu Eterno Testamento”. Chegou.

Eu o abro, de vagar, apreciando o toque da capa, o cheiro das folhas, o peso na mão. Eu folheio as primeiras páginas, todas negras. Muito propício; eu penso e rimos, o livro e eu. Eu me perco naquela escuridão pautada por “uma biografia”. O índice como constelação de estrelas brancas. A epígrafe que pulo, quebrando uma regra minha. Por fim a primeira página branca. “Introdução A Esfinge”.

Leio: “Em 1946....” Paro. Será agora o melhor momento para começar? Será esse o melhor lugar para ler? Penso até em me chantagear com o livro: “Não, Vinícius, só irás lê-lo depois de terminar o artigo que estás me devendo”. Eu sei que essa leitura é uma viagem sem volta. Essas 647 páginas, uma vez começadas, serão meu único e mais intenso objetivo de vida. Eu sei que tudo vai ser posto de lado quando eu me entregar ao livro. Então eu o fecho, com o pavor de minha intensidade.

Eu o deixo sobre a cama. Vou cuidar de coisas urgentes que de repente invento. Olho com cobiça e gula cada vez que passo pelo quarto. Mas eu sei que ele vai estar ali. Pelo tempo que eu quiser. Para sempre. Meu livro, Meu livro.

PS¹: Quem não entendeu o título, leia o conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector.
PS²: O trecho do texto entre aspas e em itálico pertence ao mesmo conto supracitado.
PS³: Qual é o livro de que escrevo? Quem tem sabe. Quem não tem pode descobrir pelas pistas que dei.