terça-feira, 25 de agosto de 2009

No dia...

“No dia em que eu morrer não morra de amores”

Lembre-se de mim só quando vir avelãs, cogumelos e cerejas. Lembre-se no vermelho das coisas, nos dias de chuva, nas tardes de vento e sempre que anoitecer.
Lembre-se de mim só no outono das folhas, nas histórias de crianças, nas cores da pintura. Lembre-se nos flashes da fotografia, nas rimas da poesia, naquilo que você não consegue entender.
Lembre-se de mim só nas gavetas trancadas, em todos os livros e nas músicas mais tristes. Lembre-se no drama dos filmes, nos perfumes mais fortes, nas madrugadas mais frias.
Lembre-se de mim só nos temperos mais picantes, nos mistérios mais bobos e nas horas mais insólitas. Lembre-se nas sombras dos plátanos, nos olhos dos felinos e no bagunça do seu quarto.
Lembre-se de mim só nas lentes de outros óculos, nas carícias de pelúcia e nos círculos da lua. Lembre-se nos arabescos do complexo, nos espelhos sem reflexo e nas asas do que voa.
Lembre-se de mim só nas janelas daquele ônibus que vai, nas caretas dos palhaços e nos cliques do teclado. Lembre-se nos riscos da calçada, nas coisas que são de prata e nas cartas de ler sorte.
Lembre-se de mim só na mudez sempre suspeita, na nudez quase perfeita e nos lábios voluptuosos. Lembre-se nas caixas escondidas, no grito das aves e no pó que faz o giz.
Lembre-se de mim só na luz, quando faltar, nos morangos mais maduros e nos pedidos mais singelos. Lembre-se nas frases em francês, nos testes de inglês e nos ditados em latim.
Lembre-se de mim só nos arrepios do pescoço, na sinfonia de gemidos e sintonia da TV. Lembre-se no vento carregando as folhas, nas nuvens desenhando o céu e nas chamas de qualquer vela.

“No dia em que eu morrer
mesmo só estando o meu corpo aqui
Vou te fazer lembrar de tudo que fizemos
Dos dias tão felizes que nós dois tivemos
No dia em que eu morrer não lembre do tempo que perdemos
Lembre do tempo que eu te dei
No dia em que eu morrer”

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Palavras, apenas

"Escrever é uma maldição"

As palavras. Eu não as quero mais.
Não as quero, porque elas esperaram ouvir da minha boca, toda madura e inocente, que eu as desejava.
Diabólicas, elas me conduziram vendado ao abismo e sussurram lúbricas, irresistíveis: Pula.
Entreguei-me por completo às asas de cera, sem esperar que derretessem. Derreteram. Derreteu a máscara, também de cera, e me vi nu, em pleno palco.
Cansei das promessas falsas, do desalinho imoral que me causam, da devassidão que paira à loucura em que me botam.
Se pudesse, terminava os dias seco, sem mais nada ler. Queimaria os livros, esqueceria as letras, rasgaria as páginas secas, as rimas tortas, os versos torpes. Atiraria tudo ao alto e seria, irremediavelmente feliz.


terça-feira, 18 de agosto de 2009

Sozinho (de novo)

“Por que você me deixa tão solto?
Por que você não cola em mim?
Tô me sentindo muito sozinho!

Não sou nem quero ser o seu dono
É que um carinho às vezes cai bem

...

Onde está você agora?

Então, nunca eu?
Não. Eu fico para trás, eu sou o “depois”, sou o “se der tempo”. A tempestade vem se eu a invoco, mas você não. O vento vem e quase passa, arrasta as árvores, estala a casa, e na rua ninguém.
Não importa o quanto eu chame, grite ou me despedace. Não importa o quanto eu te ame, fique ou passe.
Dia e noite, há mais importância em quem te fere do que em quem te excita.
Enquanto lhe sacia a boa companhia, falta-me qualquer ousadia. Testa colada à vidraria nua, gelado, olhando a rua.
Sempre a mesma espera....
Não, não se importe por minha causa, venha a hora que quiser.
Eu já estou quase acostumado a me desmerecer na solidão.
Mas qualquer dia...
Qualquer dia eu deixo você deste lado da janela, me esperando. Deixo você deste lado da porta, enquanto eu converso com meus amigos lá fora... Amigos bons, daqueles que dizem me preferir quando estou sozinho... Você entende? Entende...
Aí, você, bem sozinha, vai poder escutar meus risos, que Não serão para você...
Qualquer dia, daí você entende o quanto dói.

Ah, e as chaves... estão debaixo do capacho.



segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Última Dança

"Até o baile acabar com a rainha"

Mas e depois? Chorar quando acaba o baile já não serve, não encanta. Correr já nem agrada.
Deixa-se ficar então, estátua estática, palanqueada entre os vazios dançantes do salão.
Deixa-se ficar entre as fitas coloridas decaídas, os balões doloridos de murchos, as flores pisoteadas e a poeira que se acumula.
Deixa-se ficar remoendo os restos, olhando saudosa para tudo que ainda resta daquela festa impossível de acontecer. Porque de todas ela não dançou.
Deixa-se ficar e estar ali quando os primeiros sóis penetrarem nas janelas poluídas, iluminando o rosto borrado de lápis azul. Deixa cair os braços nos tons de uma música triste, aquela que há muito já nem existe.
Deixa-se envelhecer assim, na cena congelada, enquanto decai todo salão, enquanto o tempo abre brechas no telhado e os ventos entoam a solidão.
Deixa-se, enquanto o vestido apodrece e cai às mechas, quem sabe a noite lave as manchas. Quem sabe as horas enruguem a diadema.
Deixa-se, porque no seu salão sempre foi fim de festa.



quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Das gavetas

“Dona Cômoda tem três gavetas, E um ar confortável de senhora rica. Nas gavetas guarda coisas de outros tempos, só para si. Sempre foi assim, dona Cômoda: gorda, fechada e egoísta”

Chega uma hora em que é preciso mudar. No meio de uma noite insone, Benjamina, fadada a morrer de tristeza, me convenceu a deixá-la abrir as gavetas. Porque se eu não tenho a coragem necessária para fazê-lo, não é justo que a menina sofra por mim.
Benjamina não sabe, mas fez mais do que isso, deu-me coragem para procurar minha própria felicidade guardada, não importando o que aconteça nos caminhos errados. Porque daí então eu percebi que se é por mim que os sinos dobram, também é por mim que as estrelas brilham.


(Clique na imagem para ver o trailer de um dos melhores filmes já produzidos)

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Indelicadezas

“Vassoura atrás da porta espanta visita indesejada”

Ela ligou dizendo que viria, mas eu não a convidei. Nem você. Eu achei uma extrema falta de delicadeza. Quis inventar qualquer desculpa, mas não tive tempo, nem idéia.
Só por isso ela veio, estragando a noite, mofando as horas e arrebentando nas mãos os nossos minutos. Ela sentou no nosso sofá e até falou como se quiséssemos ouvir. Riu como se a quiséssemos ali. Comeu como se fizéssemos questão.
Nos dois nos olhávamos, tristes pela terça que se ia entre os ponteiros. Tínhamos planos, palmos e palmos de planos que agora escorriam pelos gumes da tesoura. Nada especial, ler um livro, assistir ao jornal... Tínhamos o direito de sermos sem a sua presença!
Não, não tínhamos.
Tocá-la para fora seria no mínimo indelicado, de modo que bocejei para expressar o tardar da hora. Ela fingiu não ver. Era sempre assim, perdida nos meandros do tempo ela ia ficando mais e mais da nossa vida ia morrendo aos seus olhares.


segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Baile de Máscaras

"Não me perguntes por quem os sinos dobram, porque eles dobram por ti"

Exatamente o que nós vamos comemorar? À saúde de que o vinho será amargo? Por que motivo o sal impregnará a carne? Digam-me, por quem a música tocará?
Não, vocês não sabem me dizer. Talvez digam mentindo que a homenageada é a velha amizade. Ah, esta senhora de tão velha nem me lembra mais o rosto, nunca me cumprimenta na rua.
Não vou à festa do tempo. Porque desde o começo das danças eu ficava sozinho. Não dançava, nem bebia, nem sorria. Eu chorava, mas só quando podia, escondido.
Não percebem ser o baile uma desculpa? Sim, desculpa frívola para que os casais antigos rolem nas gramas. Para que os risos antigos ecoem nos cantos, para que gargalhadas mortas voem feito abutres sobre nossos corpos.
Então não vou. Não vou porque não há o que comemorar. Não há com quem, entendem? Como vou brindar com aqueles que não chorariam minha morte?
Como vou me sentir vivo, entre aqueles que me mataram?