sexta-feira, 26 de junho de 2009

O Bruxo do contestado

Eu não pensava em nada, apenas olhava meus cabelos caindo sobre o colo. O barbeiro antigo travava assuntos de morte com o velho sentado à espera. Nenhum de nós viu de onde o terceiro velho veio.
Ele riu na porta e a risada puxou meus olhos. Sem os óculos não o via bem, mas ele me encarava pelo espelho. Ele era, para mim, um borrão desfocado. A roupa escura, o chapéu negro e a pele da cor de nossa terra, parda, vermelha, bem podia ser feito de barro.
O fígaro mandou que entrasse, sentasse e esperasse um pouco. Era só o tempo de terminar o rapaz, referia-se a mim.
Ele não entrou, não ainda. Riu de novo e disse assim: “Rapaz? Mas ele é mais velho do que nós três juntos”. Ele deu sua terceira gargalhada de arremedo sinistro. Os dois outros velhos não entenderam, eu apenas temi entender e permaneci petrificado.

sábado, 20 de junho de 2009

Verdades jogadas

Eu lhe disse todas as coisas imundas que queria. Todas as que ele merecia ouvir. Ele, no entanto, permaneceu mudamente calado. Seu silêncio aceitava todas as acusações, o que era de uma humildade insuportável. Eu esperei que ele se revoltasse, negasse minhas verdades cruéis, gritasse, me ferisse a cara e a alma. E ele ali, mudo. Eu o odiava por tudo e, icontido como sou, desferi-lhe um golpe mortal entre os olhos!
O resultado é que cortei a mão, ao quebrar o espelho em bem mais de mil pedaços.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Fim de Guerra

Destroços por toda parte, coisas empilhadas, amontoadas, organizadas ao bel prazer do tempo. Roupas jogadas, livros esparramados. Um cachecol que enrola-se a si mesmo, numa imitação de cobra verde. Fios e cabos pelo chão, canetas, pó de giz, lã, folhas, fitas, vidros, cds, sapatos, sem par todos sem rumo, perdidos.
Uma guerra? Não, meu quarto.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

É estranho como é triste

Quando os demônios fugiram a primeira dor que senti foi de alívio. Eu era livre. Mas o que se faz da liberdade? A liberdade é um sentimento grande demais, sem vícios o homem tem todo o tempo do mundo para ser. É possível decidir o que fazer com cada maldito momento. Quem pode arcar com essa responsabilidade? Ninguém. Por isso chamei os demônios de volta e ordenei que não me fugissem mais.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A Morte

Algumas pessoas esquecem da morte. Mas ela não é mulher que goste de ser esquecida. Quando já quase acreditam que ela não existe, ela manda flores, preferencialmente detestáveis crisântemos amarelos.
Deus que me proteja da morte e sua foice.
Qualquer dia eu morro, bem o sei, e quero tudo diferente. Meu corpo não ficará exposto. Eu não quero velório. Não quero deitar na caixa de madeira com toda essa gente em volta de mim, até as pessoas de quem eu não gosto. Não quero ouvir entre sussurros “Como ele está natural” ou “Que cor feia ele tem”.
Não quero ninguém debruçado sobre mim, não quero que passem as mãos nas minhas defuntas mãos, não quero beijos na testa, nem carícias na face. E tirem já as mãos dos meus cabelos! Nem em vida eu me deixava acariciar. Não quero missa com dizeres insinceros, nem enterro com vela de cemitério.
Não quero ser deitado sozinho em um buraco de cimento. Não quero deteriorar lentamente.
Quero ser queimado, com corpo ainda quente. Quero virar cinza e voltar ao pó.
Depois, que esperem um entardecer de tempestade. Um pôr-do-sol encoberto por nuvens de chumbo, um silêncio súbito, folhas aladas, pássaros fúlgidos. Esperem os trovões e raios, antes da chuva chegar, me lancem no vento. Porque foi o vento que eu prometi amar.
Que o vento me leve, que a chuva me lave.
Aos meus, digam depois, que me tornei um eterno morador das tempestades.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Crônicas de Viagem I

Era só um ônibus, movimentando-se no meio do nada.
E porque não havia a necessidade de ver, fez-se a noite.
A noite era fria, densa e longa, não queríamos falar nada, tampouco pretendíamos ouvir.
Compreendam: não havia a necessidade de ouvir.
Mas ouvíamos.
Lá, perto dos últimos assentos, dois conversavam em alto e mau tom.
Cada qual com um copo de cachaça, o jurista e o médico cortavam o silêncio da viagem.
Era noite, era frio e o mundo reverberava lá fora, em estrelas luminosas.
Éramos um nada perdido no universo imenso.
Atravessávamos pastagens vazias, asfaltos desertos e para quê, meu Deus, aquelas palavras?
Pensei em perguntar, mas só pode que decidiam ali o futuro do mundo.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Da Feira da Pintura

Começou pintando coisas em uma agenda velha de ano antigo. Não mostrou ao pai, nem à mãe; guardou.
Na escola, desenhava bem, pintava ainda melhor, diziam que tinha talento. A professora de Artes, matéria favorita do menino, uma vez até pediu para ficar com um de seus desenhos. Era realmente uma imagem muito bonita, de céu escuro e bastante verde nas colinas, onde ardia uma fogueira, vermelha.
Segundo a professora, a tela ganhou ares de destaque, emoldurada na sala de sua casa.
Contou ao pai e à mãe, mostrou-lhes outros desenhos, ao que o pai disse:
— Realmente, muito bonitos.
Mas não olhou direito.
Já a mãe, sempre dotada de atenção gratuita e desmedida, respondeu:
— Não vês que estou descascando batatas? Pois agora não tenho tempo de ver seus rabiscos.
O menino não se importunou muito e foi ao quarto pintar mais.
Antes mesmo dos 15 anos, já ganhara no mínimo quatro concursos com seus retratos. Gozava de certa fama na cidade pequena, quase uma aldeia.
Então coisas aconteceram. Não é que não soubesse mais pintar, mas depois de alguns anos suas pinturas perderam a fama, esqueceram seu espaço, de modo que aos 20 e poucos, quase nada se falava delas.
O sonho do menino? Ser um pintor.
O incrível é que já o era, mas sem ter feito exposição de suas telas, não se considerava, nem era considerado.
Foi nesta época, mais ou menos, que promoveram na cidade a 11ª Feira da Pintura. Ele estava lá, quando apresentaram os pintores da cidade, mas não entre eles: uma delas pintava vasos de flor; outro, paisagens e o último, ao que se sabia, era pintor de paredes.
Caso perguntassem a um dos três, porque pintavam, não teriam resposta.
O único pintor verdadeiro da cidade, assistia à palestra, não palestrava. Porque enquanto aqueles lá pintavam com os dedos, o rapaz pintava com a alma.
A organizadora de tudo era sua parenta, que nem o incentivava, nem o repelia, apenas ignorava que ele soubesse pintar. Como igualmente ignoravam-lhe os professores que antes lhe prometiam talento.
— Então é assim? Só assim? Será que acaso não sei mais pintar? De uma hora para outra minha pintura se transformou em fracasso?
O menino via, em desespero, seus sonhos formados de tintas vãs. Sim, porque àquela época já sua vida era a pintura. Não conhecia outra forma de ser, senão artista. E como sofrem os artistas, como sofrem... ainda mais os irreconhecidos.
Um dia depois da feira, na mesma agenda velha, ele escreveu assim, de tinta bem roxa: “Não importa. Não importa porque o meu modo de conseguir foi sempre brigando. Não importa porque tudo que tenho, foi pelo meu esforço. Mas sabe que é melhor. Assim, quando eu chegar lá, vou agradecer a quem é realmente importante para mim, não como forma de pagar favor. Porque se ninguém acredita em mim, eu me acredito, e isso precisa bastar. Porque se para eles eu sou mais um, levemente talentoso, para mim eu sou tudo. Sou uma alma que se imprime em quadros. Então os outros, que pintam paredes, valem uma subida ao palco e eu, que pinto sentimentos, não? Não. Também não importa, porque eles morrerão pintando paredes, ao passo que eu mereço mais que este palco à pique. Eu preciso acreditar, porque se eu não me acreditar, então quem o fará? Não importa que os mestres ignorem meus quadros, nem que a cidade mal saiba que ainda desenho. Minha arte me é e me basta.”
Então, o menino cresceu... e virou Picasso.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Minha culpa.

É porque o errado sou sempre eu. É porque os outros são per-fei-tos. É porque eu sou do contra. É porque penso sozinho. Na verdade, é só porque mataram meu gato e esperam que eu concorde, ou ao menos não crie problemas. É porque cada um tem seu jeito de ver. É porque ninguém é eu. É porque não me amam mais. É porque, no fundo, invejam tudo que é meu, querem me punir por não terem. É porque me queriam conformado e dócil, sem contestar o sistema. É porque já nem me querem, não suportam mais minha presença, como quem cansa de um bicho comprado. É porque eu sempre sei como feri-los, e eles não me atingem. É porque eu custei muito caro. É porque eu sou deles, por direito. É porque o meu silêncio desagrada e os limites não me detêm. É porque extrapolei. É porque já quase não como mais. É porque eu ainda sou jovem e posso conseguir o que eu quiser. É porque eu os fiz esquecer como eu era. É porque minha boca já não os beija, antes cospe. É porque cresci demais. É porque eles gostam quando eu choro e então se assustam de serem maus. É porque eles querem que eu vá embora. É porque a carne é cara, mas eu nem gosto. É porque eu só faço os bolos quando a vontade vem de dentro, não quando me pedem. É porque eu bagunço a casa. É porque eu conheço os defeitos deles e não me calo. É porque eu não finjo acreditar nas doenças inventadas. É porque eles preferem acreditar que o culpado sou eu. É porque eles precisam ser as vítimas. É porque não querem pagar o que me devem. É porque eu sou o gato preto. É porque perdi a graça da novidade. É porque não durmo mais na cama. É porque eles a queriam. É porque leio demais. É porque aquilo que é humano sente a irremediável vontade de odiar. É porque não falo alemão, mas entendo a aversão na voz. É porque eu não sorri o bastante. É porque eu não sou mais o miquinho do circo, tão engraçadinho. É porque deixei de usar gravata e coleirinha. É porque me nego a fazer os truques que pedem. É porque eu escuto por trás da porta. É porque não podem me entender, nem eu posso explicar. É porque não lêem o que eu escrevo. É também porque não vale à pena. É porque não valho nada. É porque não sei chorar, sobretudo. É porque tomo remédios escondido. É porque eles não se culpam mais. É porque eu não sou de ninguém e no fundo a Madrinha teve razão quando disse que criança não se adota. É porque não se cria filho dos outros. É só porque eu sou triste. É porque eu sou ruim e não presto e estrago tudo, invariavelmente. É porque eles esquecem das promessas graves. É porque não vou à igreja. É porque lhes aponto os próprios vícios. É porque sou a vontade de vomitar. É porque tenho felicidades secretas. É só porque eu não morro nunca. Nunca? Nunca.