terça-feira, 14 de outubro de 2008

Pingos

"Deus está na chuva"

Quem é aquele homem, que se esconde de mim debaixo de árvores e mezaninos? Que corre apressado para eu não lhe pegar? Cabeça baixa e passo rápido, ele não quer se molhar?

Aquele homem sou eu.

Ingrato. Busquei da montanha mais alta o gelo mais branco. De cada mar trouxe uma pérola d’água. Busquei as gotas do rio mais doce, e no caminho apanhei algumas lágrimas também, para que não precisasses chorar. Corri por léguas desertas, extraindo vida da areia. Voei sobre Paris, para lhe trazer um pingo de lá. Eu trouxe do vinho o mais rubro e do sumo o mais raro.
Procurei as águas que já te banharam, desde a infância. Busquei das cascatas que admiraste nas fotos. Colhi gotículas de orvalho nas roseiras em flor. Apanhei a saliva dos beijos, a evanescência das brumas, a beleza dos céus e as trouxe para ti.

Foi então que percebi. Quem era aquele homem que fugia da chuva? Onde estava o menino que andava feliz dentro dela? Eu corria, veloz, com cuidado inútil para não me molhar. Era preciso manter as roupas secas, o celular funcionando, os sapatos novos, a carteira intacta, os óculos límpidos.
Foi quando choveu que me dei por conta, o menino já não estava mais ali. Na certa cansou de tanto ser ignorado e foi brincar de bola em algum terreno baldio. O homem que ficou nem sempre é o que eu gosto.
Parei.
Cinco horas da tarde, o planeta girando, a chuva caindo, as pessoas correndo e eu ali, parado no centro de tudo. As primeiras gotas que senti no rosto me fizeram sentir vivo.
Uma vida pulsante, tantas águas buscadas de mares não navegados, especialmente para mim. Eu fugia da chuva, da essência da vida. No que eu me tornei? E os sonhos bobos, as esperanças frívolas, toda aquela graça do menino que caminhava na chuva, mesmo quando trazia o guarda-chuva?
A água escorrendo no corpo, meus passos no meio da rua, seguindo aquela linha reta de paralelepípedos, os olhos fechados, a boca entreaberta. A roupa colada, os cabelos caídos, um pouco assim, sobre o rosto.
O menino voltou. E veio sorrindo, pegar minha mão.

2 comentários:

  1. Eu assisti a esse filme... "Deus está na chuva"... Essa fala... Eu me lembro... Não lembro o nome do filme... Me diga!

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