terça-feira, 30 de setembro de 2008

Um vão

"Perder o vazio é empobrecer"

Há um dia em que é preciso não tirar a roupa, sequer os sapatos, ao chegar em casa.
É preciso ignorar o banho, tão tocar no queijo nem beber do vinho.
É preciso não fechar a janela, esperar a noite entrar e ouvir o cantar dos pássaros, sem saber a letra por trás da melodia.
Há um dia em que é preciso não ligar o rádio, não conectar a internet, nem tirar fotografias.
É preciso não escrever nenhum texto, não expor nenhuma pintura e nem estudar para tantas provas.
Experimente: é preciso apenas deitar na cama, sem deixar os olhos abertos e sem dormir também.
É preciso ouvir o mundo lá fora, sem ser parte dele. É preciso esquecer os problemas, ignorar as compras, os projetos, os planos.
É preciso não lembrar que temos família, que temos amigos e que temos dor nas costas.
É preciso tirar os óculos e esquecer onde colocamos. Ver não é preciso.
É preciso ficar, sem objetivos, sem méritos, sem promessas.
É preciso não ler a pilha de livros, é preciso não terminar o trabalho com prazo vencido.
É preciso não usar nenhum travesseiro, sequer tocar no edredom e lençóis. Alguns dias é preciso até deitar no chão.
É preciso não pensar sobre o que fazer com os pés ou com as mãos.
Não falar, não cantar, nem pensar é preciso.
Há um dia em que é preciso
morrer; pelo simples prazer de sentir-se vivo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Caleidoscópio

"Vem, vamos embora"

São números e letras, horas e águas, também são éguas e águias. São e-mails e envelopes, fichas e tintas, canetas e assinaturas. São liberações e arquivamentos, consultas e correções. Fluxos e laudos, fórmulas e testes, couros e papéis, árvores e vacas, tudo morto. São fofocas e Newtons, matizações e quilos, escadas, graus e degraus, malotes e porcentagens, varões e aversões.
São retornos e resultados, processos e retrabalhos, tesouras e lotes. São mouses e rascunhos, apitos e especificações, pallets e normas. São mesas e telas, reprovações e caminhões, estufas em 180 e comprimidos, muitos deles. São cheiros de queimado e escalas de cinza, análises e corredores, reuniões e penalidades.
Alguém viu Dark Blue Violet?
Onde está Dark Blue Violet?
No inferno, quem sabe...
São letras e regras, crases e crises, épocas e estilos. São tipos e gêneros, textos e lâminas, pessoas e livros. São anos e marcos, tópicos e típicos, autores e alunos. São trabalhos e poemas, provas e artigos, flexões e substantivos. São latins e Camões, planos e projetos, resenhas e análises. São derivações e vogais, escadas e sinais, acentos e cadeiras, gramáticas e classes.
Ah, cansei.
O último a sair, por favor, apague a luz.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

La Petit Mademoiselle Tristesse

“Só por hoje darei alta aos analistas, psicólogos, psiquiatras...”

Hoje eu queria fotografar minha tristeza.
Contei a ela, pedi que se preparasse para o retrato enquanto eu ia buscar a câmera. Quando voltei, ela havia se enfeitado. Colocou na cabeça alguns pêlos caídos do cachorro. Alisou o vestidinho roto, limpou a cara de um pouco da sujeira e pingou algumas gotas do meu perfume.
Encontrei-a ali no chão, forçando um sorrisinho e uma pose.
Tão velha, tão pequena, tão falsa, tão pobre, tão medíocre a minha tristeza.
Bateu-me lá no fundo do peito qualquer coisa parecida com compaixão. Soou uma nota em dó. Dó de vê-la ali, metida no chão, tomando para si uma importância que não lhe designo.
Menos de cinco centímetros, mas tão aguda sua voz, tão grandes aqueles olhinhos pretos e brilhantes, tão pontudinho aquele nariz torto e fino, tão esverdeada aquela pele enrugada e bolorenta...
Entre ativar o macro e ajustar o foco, percebi que a tristeza não era coisa de se registrar. Ela não era nem um pouco fotogênica, mal se distinguia ali, da fresta do assoalho.
Sorri sem jeito. Ela firme na pose. Menti que a bateria acabou, não tinha como fazer a foto.
Ela sorriu, agora verdadeira, seu riso mais triste. Limpou o nariz na manga e sussurrou que não tinha muita importância. Que outra hora, só se eu quisesse, é claro, podia procurá-la novamente. Disse que nunca ninguém antes quis tirar um retratinho seu.
Sufoquei umas lágrimas e pedi se ela não queria então ir lá fora ver, dizem que chegou a primavera. Ela agradeceu estridente, disse que não. Não acreditava muito nessa história de primavera. Depois disso ainda olhou para mim, baixou a cabeça e foi andando devagarzinho para atrás da CPU.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O Colecionador

“Gosto tanto de você. Já pensou em se matar?”

Não são bonitas assim, enfileiradinhas, na minha coleção?
Ora, mas que caras tão estranhas. Nunca viram ajuntamento assim?
Nem selos, nem cartões, nem postais e nem botões.
Só minhas queridas, caríssimas, todas de louça, todas de lua, toda loucura.
Esta no rio, aquela com tiro, a outra? Remédios, eu acho.
Minha favorita: num impulso cortou os pulsos.
Venham, venham todos ver, minha doce coleção de escritoras suicidas.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O Fabuloso Destino

"A sabedoria é algo que quando nos bate à porta já não nos serve para nada."

Este é um fato inegável: um dia você vai acordar velho.
Planos para o futuro? Você nem vai saber se chega vivo até o jantar. Você vai sentar na cama e talvez pensar. Qual foi mesmo a faculdade que você fez? Não importa. Talvez tenha trabalhado na sua área, talvez não. Talvez tenha feito o que gostava, talvez não.
Você não vai mais precisar de todas aquelas coisas que anunciam na TV. Não precisa guardar o dinheiro da sua aposentadoria para um notebook ou uma câmera digital com zoom de 18x. Agradeça a Deus se ainda puder comer os chocolates.
Talvez você esteja sozinho, talvez com alguém que já não ama, talvez todas que você amou já tenham morrido.
Haverá ainda uma família, seus filhos, seus netos... Todos ocupados demais em viver suas vidas, fazer suas faculdades, comprar suas coisas. Quem iria querer visitar o avô?
O que você vai fazer durante o dia? Olhar pela janela, talvez sentar debaixo das árvores, jogar cartas com os outros, ler um jornal velho.
À noite, enfim, vai poder tomar sua sopa (é, mais um dia que você sobrevive até o jantar), tirar os dentes e dormir.
A noite será longa, você sonha com a falecida mãe. Acorda tossindo, é mau presságio sonhar com os mortos. Os olhos meio baços fitam o escuro do teto. Saudade da mãe, saudade do pai, coisas que nem ficam bem para um senhor da sua idade.
As horas lentas, dançando no quarto as paixões memoráveis, finalmente algum galo canta num país longínquo. Raios de sol entram pela janela.
Mais um dia em que você acorda velho.
Faz as mesmas coisas de ontem, as mesmas coisas que amanhã, sempre vivo na hora de jantar.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Culpado!

“São os homens inteligentes demais para a vida relativamente ociosa que levam e na qual não se realizam as suas faculdades”

Escrever para quê, se todas as páginas amarelam?
Pintar para quê, se todas as telas mofam?
Viver para quê, se todas as pessoas morrem?
É exatamente disso que estamos falando, a insignificância da vida. O que deu certo, até agora? Porque pensando assim, bem rápido, calculando meio por cima, se descontarmos todas as coisas que deram errado, o que sobra? Nada. Estamos no vermelho, devendo para a vida.
É agridoce o sarcasmo de um destino que lhe abre as portas, mas não deixa passar. Eu procuro incansável, o culpado, a saída, a resposta. Não encontro.
Do que depende a vida, esforço ou sorte?
A sorte não tenho. O esforço não faço.
Sento nestas cadeiras quebradas, imaginando a desgraça de não ter a vida que quero, olhando para as cartas que já não trazem boas novas, mentindo que acredito num futuro melhor.
Não quero o melhor depois. Não quero deixar o chocolate para o fim. Quero o gosto doce agora, porque depois é sempre tarde demais.
É duro ver gente tão pior que você se dando bem. Não é inveja, juro, é desconsolo. De que adianta talento se não há oportunidade? Páginas que amarelam, telas que mofam, pessoas que morrem.
Tudo em volta dando errado.
Sejamos sinceros, quem aqui é o responsável? Que apareça o culpado.
Juro, tenho medo de invocá-lo assim, medo de que ele apareça ali no espelho.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Réquiem de Rosa Triste

"O importante é a rosa"

Assim, no meio da tarde, minha amiga, te imagino dando a aula e caindo no chão. Talvez na quarta série, falavas tanto dos teus alunos da quarta série...
Tão triste, minha colega, morrer assim, no meio da tarde.
Deixou-nos cedo, sem que esperássemos. Agora, chocados e entristecidos, olhamos uns para os outros, esperando que alguém diga ser mentira.
Lembro da nossa última conversa, reclamávamos da aula, acho que de Português. Leoni, minha amiga, não farás a prova de Português.
Teus livros, teus cadernos, teus trabalhos, tuas provas, nunca mais, Leoni.
Agora eu vejo que conversamos tão pouco, rimos tão pouco, festejamos tão pouco... Eu não sei nada de você.
Sei que tens um filho, às vezes bancava também a nossa mãe.
Sei que tens um ex-marido, às vezes nos dizia para não casarmos.
Sei que Achavas umas pestes aqueles alunos da quarta série...
Diga, Leoni, morreste assim, na frente deles?
Eu só consigo visualizar esta cena.
Tia, a Profe está morta!
Ah, Leoni, e tuas passagens de ônibus, e teu chapeuzinho de lã, e os óculos para nossa miopia?
Minha amiga, tanta vida e você se deita no piso no meio da tarde?
Tua voz ainda é nítida na minha cabeça, teu rosto, teu jeito de arrumar os cabelos curtos, teu riso, tudo tão vivo. Você vive em cada um de nós, mas fora isso, preparam seu corpo para o extenso funeral.
Choramos.
Choramos porque dói ver que partiste para sempre, choramos porque dói colocarem nossa colega debaixo da terra.
Onde estás, Leoni?
Dúvidas, incertezas, lágrimas e sutilezas.
Ah, minha amiga, teu filho, teus amigos, teus alunos, teus colegas?
Onde eles estarão sem ti?
Seguiremos; vivendo porque a vida é necessária
Quanto a você, querida amiga, descanse em paz, esteja onde estiver.



PS: Sabe, Leoni, estou fazendo uma série fotográfica chamada Les Fleurs. Eu havia prometido não colocar rosas, porque são, ao meu ver, banalizadas demais, foram simplificadas demais.
Mas, minha amiga, percebo eu agora, é nas coisas mais comuns, mais triviais, mais banais, que está o sentido da vida. Receba esta rosa como minha singela homenagem. E, apesar das cores, assim alegres (sei que irias preferir dessa forma), a palavra tristeza marca o que conhecemos por alma.

Cidade Natal

“Vou voltar, sei que ainda vou voltar”

É estranha minha relação com Passo Fundo.
Quando eu era criança, estar lá significava uma infinitude de pequenos prazeres.
Foi aqui que eu nasci, não foi, pai?
Eu olhava as ruas tão grandes os prédios sempre gigantes e era a glória saber que eu havia nascido ali, entre aquela gente da cidade grande.
Mais tarde vinha a apreensão. Eu poderia cruzar, em qualquer esquina, com meus pais, tão biológicos quanto desconhecidos. Poderia ver caminhando, sem saber, os meus irmãos. Tudo tão imensamente angustiante. E se, de repente, no meu rosto fosse reconhecido algum traço de parentesco, nas voltas do meu cabelo, nas curvas da minha boca, nas covas do meu sorriso?
Eu tive medo que a velha herança genética pudesse me trair.
Agora, já teoricamente adulto, a cidade me angustia.
Não por ser relativamente grande, ao menos para quem mora em Taptown. Eu não sei, sinceramente, o motivo. Afloram minhas crises de autismo, muita informação para meu cérebro, tantas cores, tantos gritos, tantos movimentos... Ele trava.
Porém, como já disse, não consigo atribuir a causa ao tamanho da cidade, ela perdeu, como todo resto, o gigantismo que minha infância lhe impunha. E em Porto Alegre mesmo, aquela sim, cidade grande, sinto-me completamente à vontade.
Hoje passei a manhã em Passo Fundo, meu sentimento foi de maior confusão ainda. Caminhei sozinho, vendo rostos estranhos, torcendo para não encontrar nenhum parecido com o meu, senti-me desolado. Vaguei procurando por coisas para fotografar, ou queria encontrar um pé de ipês amarelos, não sei bem ao certo. Entrei em ruas sem saída, sorri para pessoas desconhecidas, mas tudo tão distante, tão onírico.
Meus pés iam sem comando, quando percebi estava no meio da rua, sinal verde para os carros, e eu caminhando, cabeça baixa, passos lentos, nem na faixa...
Só estranhos passeiam na cidade onde nasci. Tanta gente apressada, tantos homens de terno (imagem surreal aqui em Taptown), tantas pessoas do interior fazendo compras e consultas na “cidade grande”, tantos cachorros correndo sem dono, tanto lixo esperando o dia começar para ser varrido.
Acho que não nasci ali. Certamente, também não nasci aqui.
Eu vim.
É engraçado, mas nunca o termo sempre usado pela minha mãe fez tanto sentido.
Sempre que se refere ao meu nascimento, por eu ter sido adotado, no lugar de dizer “quando o Vinícius nasceu...” minha mãe opta pelo “quanto o Vinícius veio...”.
Por não me encaixar em lugar algum, tomo como explicação de origem os termos da minha mãe: Eu vim, pura e simplesmente.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

E chove em Tapera II

Nesta cidade fictícia, são estranhas as coisas que acontecem, especialmente nos dias ou noites de chuva.

— Alô.
— Oi.
— Nossa, que horas são, heim?
— Desculpe. Acho que umas três da madrugada, meu ônibus deve estar quase chegando.
— Ônibus?
— É. Eu estou indo para Porto Alegre. Não posso mais ficar aqui.
— Como é que é?
— Eu só liguei para me despedir.
— Onde você está?
— Na rodoviária.
— Você está indo fazer o que em Porto Alegre?
— Nada especial, só estou fugindo de você.
— Como?
— Nada.
— Cara, você está bem?
— Não. Sabe, eu ia simplesmente ir embora, mas daí eu pensei em ligar.
— Mas você vai ir embora por quê?
— Porque não quero mais te ver.
— Eu não estou entendendo onde você quer chegar. O que foi que eu fiz?
— Nada. Quem fez fui eu...
— O quê?
— Eu te amo.
— Ama?
— É, e não te amo como amigo, como irmão, ou seja lá como for...
— Puxa, eu nem sei o que dizer...
— Não diz nada. Eu nem deveria ter ligado.
— Nossa, é que você me pegou meio de surpresa. Acho que nem acordei direito ainda...
— Olha, desculpa mais uma vez. Por ter te acordado e também por te amar.
— Não diz isso. Por que você não vem aqui para minha casa, para gente poder conversar melhor? Não está certo você ir embora assim...
— Não quero conversar melhor, eu já decidi o que fazer e foi difícil o bastante. Nem todos os amores vingam, né? Além disso, meu ônibus já deve estar chegando.
— Hei, quer saber de uma coisa. Eu também não queria conversar. Só deixa eu ir aí te pegar e... fica comigo esta noite.
— O quê? Desculpa, o que você falou? Eu não ouvi direito, o ônibus chegou.
— Nada... Só te desejei uma boa viagem.

PS: Eu sei. Não precisava das duas últimas falas. Minha primeira idéia era de suspender o texto no convite para passar a noite. Um final abismático, que cada leitor buscasse, então, a sua resposta. Porém o texto se conduz. Ele, ao invés do vazio, optou por isso.
É uma crueldade, mas uma crueldade levemente adocicada.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Violeta

"Tudo o que parte, parte sempre por alguma razão."

— Qual é o nome da menina?
— Violeta.
— Hum...
— Que foi, avó, não gostou?
— É bonito, mas não se esmerem muito em criá-la.
— Como disse?
— Por causa do nome. Todas as Violetas morrem cedo e de tanto amor.



Irreflexões

“Renda-se, como eu me rendi.”

Natural que reprimido tanto tempo, todo sonho se aprouvesse da culpa e ganhasse força. O delírio deitou ao meu lado em noite escura de tão insone, acariciou em passadas leves a nudez linear das minhas curvas. Nos meus ouvidos sussurrou indecências impuras, tão familiares quanto o som da voz.
Penetrou vago e vacilante à insensatez da mente, flutuou ébrio e interessante entre os cabelos e o travesseiro. Contou como inéditas as lembranças da minha infância, fez juras perdidas entre uma casa demolida e a construção de um muro. Sibilante pedia insistente “promete ficar quieto?”. Juntei toda minha força intrínseca, toda minha alma acre, toda minha luta morna para resistir. Era preciso reagir!
O que fiz foi soar calmo: Prometo!
Numa embriagues de vinho doce, como o provado uma só vez em toda vida, fui embalado, terno e pacífico. Os demônios presos na garganta escura, os anjos ausentes em rochas marinhas e eu ali, abandonado. Que a vida viesse, que o vinho viesse, que minha alma fugisse no instante exato daquele beijo, o único beijo.
Eu podia sentir o cheiro da terra, eu podia sentir o gosto de leite, eu podia sentir o calor da tarde, eu podia sentir o toque do cimento, eu podia sentir o barulho da água, eu podia sentir o calor da carne, rija.
Eu quero gritar, mas prometi ficar quieto. Não quebro promessas, não quebro segredos, não quebro minhas culpas, nem os cristais de minha avó. Será que algum dia eu me perdoei por aquela tarde? Ele sorri irônico, sabe que não. Ele sabe. E gosta disso.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Quase DDA

"Solução melhor é não enlouquecer mais do que já enlouquecemos"

Laudos, fichas, relatórios. "Versos, cartas, minha cara".
A mesa repleta de entulhos, gavetas regurgitando documentos. Telas piscando por atenção, telefone em sinfonia desacreditada. Ruído das máquinas, roída a parede, muito sol para a calculadora solar. Tantos cálculos a fazer, tantas fichas para cadastrar, tanta gente para atender.
Pausa.
O mundo girando, muitos quilômetros por hora, a gente nem nota.
Pausa.
No meio da manhã, quisera eu tranqüila, o corpo fixo no meio da sala, o olho fixo no meio da rua. Tudo suspenso, sem piscadas ou respirações. Pensando em quê? No nada absoluto, uma vez que não pensar é impossível.
Momentos de transe, tão meus e tão seus. Pensando em quê? Não sei. Às vezes sinto que naqueles momentos de... meditação, quem sabe, resolvi grandes questões do meu pequeno universo, eu tenho as respostas. Quando volto ao mundo não as trago junto. Como se eu pudesse ter as soluções, mas fosse mais divertido ficar sem elas.
Play.
Imprevisível como a ida é o retorno. Nada acontece em especial, de repente é um sacudir de cabeça e os olhos ganham vida novamente. Continua-se a rotina, do ponto onde estancou. Quase como um filme.
Mais laudos, mais fichas, mais relatórios.
Pausa.
Geralmente são menos freqüentes, eu sei.
Turbilhões de coisas a serem feitas, mas tão interessante aquele papel sobre a mesa... Quadrado, pequeno e sujo de letras pretas.
Primeiro dobro um cantinho, depois, em sentido contrário, mais uma dobra, de mesma altura.
Pensando em quê? Não sei. Acho que na importância de dobrar aquele papel assim, sanfonadinho. Toda minha vida, todo sentido da minha existência, ali, tomando forma nas mãos.
Dobrar para um lado, dobrar para o outro.
Você sabe quantas conexões nervosas o cérebro executa por segundo? Eu também não, mas devem ser muitas.
Pausa.
Mais de um minuto, sem dúvida, e eu ali, dobrando o papelzinho. Energia e concentração fixas em fazer dobras regulares. Nada bonito, nada artístico, nada representativo.
Um homem, do lado claro da vida, dobrando um papel na mesa do escritório.
Dobrei bonito, tanto quanto minhas mãos permitiram. Mãos macias, aparentando bom trato, de carinhos ora firmes, ora delicados. Aliança de prata na mão direita, a esquerda nua. A manga de lã cobrindo os dedos até a metade, mania maldita, diz minha mãe, suja os punhos. Eu gosto assim, mãos sempre cobertas, apenas os dedos longos entrevistos de passagem. Mãos tremelicas, pouco firmes e muito rudes para imprevistos trabalhos manuais. Cunhadas mais para toques do que para artes, pelo menos estas, plásticas. Artes mágicas e gráficas, até que executam bem.
Penso nas mãos. Penso no papel.
Penso em quê? Não sei.
Olho o papel e até que ficou engraçadinho. Não bonito, nem simpático, engraçadinho. Parece meio deformado, como se saído de uma pintura surreal, quando visto assim de cima. O que era quadrado virou losango. Abro a gaveta, arrumo espaço e guardo. Deu dó de jogar no lixo fácil, ao lado da mesa, sempre ao alcance das mãos.
Play.
Outros laudos, outras fichas, outros relatórios.